RETALHOS DA
INFÂNCIA
Pra
ter animação na festa,
São João só presta puxando fogo!
(Elino
Julião)
Estou puxando pelo FOGO da
memória. Lembranças que ardem sem se queimar, paixão que se consome sem arder,
fogueira que jamais se apagará da minha coivara de lembranças, ventos que
sempre soprarão favoráveis na queima de meu roçado e chuvas que sempre cairão
benfazejas em cada coisa que eu plantar durante os dias de peregrinação nesse
planeta.
DIFUSORA DRAGÃO DO MATO
(A voz de ouro das Capembas Rajadas)
Depois do
Cordel, o rádio era a minha grande paixão. Cheguei mesmo a brincar de
radialista, quando menino. A Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967 operava num estúdio
feito de varas de marmeleiro, coberto de sacos plásticos e galhos de mofumbo,
numa capoeira que principiava logo após o monturo da casa de meus avós. O
microfone era uma lata de sardinha ligado por fios de arame a uma velha bacia
de alumínio, colocada na extremidade de uma longa vara que servia de antena. Eu
destruía velhos cadernos escolares para retirar o arame dos espirais e
construir os equipamentos da minha emissora de brinquedo. Além de atuar como
disk-jóquei e sonoplasta, eu também era o único cantor da emissora, interpretando
desde os clássicos de Luiz Gonzaga, o nosso imortal Rei do Baião, às cantigas
safadas de Genival Lacerda, João Gonçaves e Messias Holanda:
— Ô lapa de minhoca, eita que
minhocão / com uma minhoca dessas se pesca até tubarãããããoooo!
E ainda
tinha aquele clássico do comecinho da carreira do grande forrozeiro cearense:
— Ouvi cantar o sabiá na
bananeira, amor. Na bananeira ouvi um sabiá cantar... til, til, til, til,
canta, canta, sabiá...
A construção
do estúdio da Difusora Dragão do Mato principiou meio às escondidas. Vovô não
gostava que a gente andasse pelos matos armados de foices e facões derribando
moitas de marmeleiro e cavando buracos com alavancas para instalação dos
pilares (forquilhas) que sustinham o teto da construção. Para tarefas dessa
natureza eu contava sempre com a colaboração dos primos Totonho e Oswaldo, mais
velhos do que eu, que ajudavam a pegar as ferramentas no quarto da casa velha,
quando vovô tirava uma sesta após o almoço. Com um machado conseguimos cortar
quatro forquilhas mais grossas e o restante foi feito com barbante, prego,
arame e varas de marmeleiro. Tábuas de velhos caixotes e engradados vazios serviram
para montar os móveis do estúdio, um verdadeiro luxo para os meus olhos de
criança.
Por trás da
emissora ficava o meu curral de gado. Gadinho de osso, feito com as
articulações do mocotó das reses e o osso do chambari (foto postada por Carlos Flaubert Patrício de Almeida). Eu brincava também com
vagens de Pereiro, que se assemelhavam com uma sela de montaria. O cavalinho
podia ser um fruto de mandacaru com quatro patas de cipó... Ali funcionava
também a minha olaria, onde eu fabricava tijolos um pouco maiores que uma
caixa-de-fósforo, com a ajuda de uma pequena grade que eu mesmo havia
construído. Chegamos mesmo a fazer caieiras e botar fogo nesses pequenos
tijolos, com o risco de incendiar toda a capoeira. Um dia o Totonho chegou com
um plano mirabolante:
— Vamos
fazer um açude? Nunca vi fazenda sem açude.
— Um açude?
Aonde?
— Nessa
grota que passa aqui por trás da rádio. Dá um açude que é uma beleza!
Começamos no
mesmo dia. Fizemos um barreiro que dava para nadar, quando muito, meia dúzia de
patos. Vovô às vezes se incomodava com aquela movimentação, o sumiço de
ferramentas que esquecíamos no lugar da “obra” e aquela brincadeira incessante
que lhe parecia uma coisa inútil e ociosa. Naquele tempo, menino sertanejo
tinha suas obrigações. Os meus primos, por exemplo, botavam água e lenha,
cuidavam de animais e trabalhavam no roçado. Só me ajudavam nessas brincadeiras
quando não tinham o que fazer. Eu me dedicava mais ao estudo e à leitura e às
vezes ajudava na bodega ou dava água a algum animal. Raríssimas vezes fui
recrutado para o roçado. Minha avó, principalmente, achava que meu futuro
estava nos estudos e não no cabo de uma enxada. Por isso ria embevecida quando
escutava meus programas radiofônicos na Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967, a
Voz de Ouro das Capembas Rajadas.
* * *
Desde menino
eu sonhava em me tornar radialista. O velho rádio de casa era ligado direto,
das cinco da manhã até a hora de dormir, sintonizado nas rádios mais populares
da época: Difusora Cristal de Quixeramobim, Tupinambá de Sobral, Uirapuru,
Assunção e Dragão do Mar, de Fortaleza. Eram todas AM, com repertório eclético
e comunicadores que ficaram na história da radiofonia cearense. Aurélio Brasil,
Wilson Machado, Guajará Cialdini, Cid Carvalho, Narcélio Limaverde, José Lisboa
e Jurandi Mitoso estavam entre os mais populares.
Eu me
inspirava, principalmente, no Guajará Cialdini, forrozeiro da melhor cepa, que
gostava de intercalar a programação com anedotas, chistes e poemas matutos como
A estátua do Jorge, de Alberto Porfírio, Confissão de Caboclo, de Zé da Luz e
Mulher super-teimosa, de Jota Amaro. Além desses, eu sabia de cor A chegada de
Lampião no Inferno, As proezas de João Grilo e outros cordéis que eu lera desde
que me alfabetizara. Os deuses que regem o destino da humanidade prestam muita
atenção no que faz uma criança, tanto é que me tornei radialista profissional
(redator, produtor, comunicador e radioator) algum tempo depois. Tornei-me
também publicitário, ilustrador, escritor, poeta popular e declamador, do
jeitinho que havia sonhado quando criança. Mas até hoje, nenhum microfone me
deu tanto prazer quanto a velha lata de sardinha da Difusora Dragão Mato de
Ouro Preto.
Para
concluir, apresento um cordel feito recentemente para o Instituto C&A, que
me encomendou um texto sobre brincadeiras e folguedos de um menino sertanejo a
fim de inserir numa de suas publicações. Lembrei-me, é claro, da minha infância
lúdica e feliz na fazendola de meus avós:
MEUS
BRINQUEDOS DE CRIANÇA
Arievaldo Vianna Lima
— Vou falar
das brincadeiras
Do meu tempo
de criança
Porque não
posso olvidar
Tanta
bem-aventurança
Um tempo
lúdico, encantado,
Que não me
sai da lembrança.
Eu nasci e
me criei
Nos sertões
do Ceará
Lá em
Quixeramobim
Pertinho de
Quixadá
E meu primeiro
brinquedo
Foi um tosco
maracá.
Ouvi canções
de ninar
Que a minha
mãe cantava
Numa rede de
varandas
A noite ela
me botava
E solfejando
cantigas
Com prazer
me embalava.
Três
monólitos gigantes
No final da
cordilheira
Dominavam a
paisagem
Nessa terra
hospitaleira
Onde vivi
com prazer
A minha
infância primeira.
Nesse lugar
encantado
Onde só
reina alegria
No meio dos
meus parentes
Como num
sonho eu vivia
Lá, a
própria natureza
Só respira
poesia.
As aves
cantam nos galhos
Trina a
cigarra na mata
Os cristais
resplandecentes
Parecem de
ouro e prata
E o olho
d'água da fonte
Jorra em
suave cascata.
No sopé da
cordilheira
Que se ergue
abruptamente
O sabiá
laranjeira
Canta
sublime e plangente
O sol
dardeja os seus raios
Tocando a
alma da gente.
Preás se
escondem nas locas
Com medo dos
predadores
Inhambus
arrulham nas matas
Atraindo os
caçadores
Abelhas
zumbem na relva
Sugando o
néctar das flores.
No sopé dos
três serrotes
Tudo é
encanto e beleza
Seus
habitantes convivem
Em paz com a
natureza
E os
monólitos ostentam
O seu porte
de nobreza.
No ano
sessenta e sete
Do outro
século passado
Nasci
naquele recanto
E fui por
Deus inspirado
A beber
daquela fonte
Perto do
reino encantado.
Ao completar
oito anos
Meu pai, um
agricultor,
(Também um
iniciado
Na arte de
trovador),
Levou-me pra
ver de perto
Aquele
grande esplendor.
Todo esse
imaginário
Ficou na
minha lembrança
Jamais vivi
nada igual
Ao longo de
minha andança
Como as
lindas brincadeiras
Dos meus
tempos de criança.
A criança
hiperativa
Era chamada
“malina”...
Construindo
meus brinquedos
Eu gastava
adrenalina
Porque sou
um sertanejo
Do tempo da
lamparina.
Fui
crescendo curioso
E muito
observador
Lá eu vi
bumba-meu-boi,
Sanfoneiro e
tocador
De viola em
desafio
Na gesta do
trovador.
Raramente eu
ganhava
Brinquedo
industrializado
Meu pai era
agricultor
E tinha um
belo roçado
Juntei
cabelos de milho
De pelo
fino, alourado.
E mesmo sem
conhecer
Lobato, o
grande escritor
Com a palha
e os sabugos
Eu também
fui inventor
Construindo
o meu 'Visconde'
Mas não era
falador...
Quando era
tempo de inverno
Eu saia com
certeza
Procurando
borboletas
E via tanta
beleza
Que deitava
sobre a relva
Em paz com a
natureza.
Posso dizer
que vivi
Felicidade
notória...
Agora, o
momento mágico,
Que não me
sai da memória
Era quando a
minha avó
Nos contava
alguma estória.
Quando eu
era pequenino
Nos
alpendres do sertão
Que ouvia: “
Era uma vez...”
Ficava de
prontidão:
Já sabia que
as estórias
Jorravam em
profusão.
Os meninos
do sertão
Bebiam a nossa
cultura;
Os mais
velhos transmitiam,
Em prosa
franca e segura
As estórias
de Trancoso
Em oralidade
pura.
Belos
romances rimados
(Os
folhetinhos de feira)
Eram lidos
em voz alta
No alpendre
e na bagaceira
Dos engenhos
de açúcar
Para toda
cabroeira.
O Fiscal e a
Fateira
Os Cabras de
Lampião
A Vida de
Pedro Cem
Testamento
de Cancão
O Crente e o
Cachaceiro
Numa grande
discussão.
Martírios de
Genoveva
E a Donzela
Teodora
São romances
que o povo
Guarda,
conserva e adora
E a criança
inteligente
Lê, admira e
decora...
Cancão de
Fogo e João Grilo
Aderaldo e
Zé Pretinho
Juvenal e o
Dragão
Eu li tudo
com carinho,
No alpendre,
em voz alta,
Rodeado de
vizinho.
Mas hoje em
dia o sertão
Está se
modificando,
De uns
trinta anos pra cá
A cultura
está mudando
Nosso povo
regredindo
Pensa que
está avançando.
As crianças
de hoje em dia,
Depois da
televisão,
Só gostam de
vídeo-game,
Internet e
“Malhação”,
São os
sintomas maléficos
Da tal
globalização.
No meu tempo
de menino
O tempo
corria lento,
A gente
matava o tempo
Sorvendo
cada momento...
A tudo que
acontecia
Eu sempre
ficava atento.
Brinquei de
gado-de-osso,
De carrapeta
e pião,
Em
cavalinhos de pau
Corria pelo
sertão...
Com prego,
lata e madeira
Fazia o meu
caminhão.
Um parque de
diversão
Só raramente
chegava
Nas festas
do padroeiro
E pouco
tempo ficava
Porém depois
que partia
Muita
saudade deixava.
Quando
cheguei na cidade
Ainda estou
bem lembrado
Na pracinha
principal
Chegou um
circo afamado
Eu passei o
dia inteiro
Vendo o
circo ser montado.
Acompanhar o
palhaço
E cantar o
seu refrão
Nos garantia
um ingresso
Para a
grande diversão...
São coisas
que eu não vejo
Hoje em dia,
no sertão.
Mas, de toda
diversão,
Do meu tempo
de criança
O contador
de estórias
Jamais me
sai da lembrança
Essa figura
encantada
Renova a
minha esperança.
Eu tenho
muita saudade
Dos saberes
e cantares
Vovô sabia
narrar
Muitas
lendas populares
Tinha o
urubu e o sapo
Numa festa,
pelos ares.
Tinha o
macaco e a onça
A raposa e o
“cancão”
Dois gênios
da esperteza
Como reza a
tradição;
No fim da
fábula, a moral,
Trazendo
alguma lição.
Por tudo
quanto vivi
Me tornei um
menestrel
Penso rimas,
traço trovas
Em pedaços
de papel
Eis o que me
transformou
Num poeta de
cordel.
Nessa teia
do passado
Foi bom
desatar os nós,
Reviver em
poesia
Usando a
pena e a voz,
Sem retirar
da lembrança
A casa dos
meus avós.
As vagens do PEREIRO eram selas de montaria, na nossa imaginação infantil.
(Foto Carlos Flaubert Patrício de Almeida)
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