O PROFESSOR FOLHETO E A MÚSICA POPULAR NORDESTINA
São muitos os artistas consagrados da Música Popular Nordestina que tiveram influências da Literatura de Cordel em suas carreiras e até mesmo em seu processo de alfabetização. O paraibano Vital Farias é um desses casos e faz questão de ressaltar isso em todas as entrevistas que concede. Ednardo, autor de “Pavão Misterioso”, “Boi Mandingueiro”, “Rock Cordel” e outras músicas claramente influenciadas no romanceiro popular nordestino é um cearense de classe média, nascido em Fortaleza. Seu pai era dono de colégio na capital cearense, mas nem por isso deixou de beber na mesma fonte. Segundo ele, sempre que o pai viajava para o interior do estado trazia folhetos e os colocava na biblioteca do colégio, um reconhecimento pioneiro ao papel do folheto de feira como ferramenta útil ao letramento. O próprio Ednardo dá esse testemunho no programa “Salto para o futuro”, da TV Brasil (TV Escola) do qual eu fui consultor.
Alceu Valença também rezou pela mesma cartilha… Em recente entrevista concedida ao programa Globo Rural, sobre Literatura de Cordel, aparece deitado numa rede lendo a famosa “Chegada de Lampião no Inferno” e destacando o cordel como uma de suas leituras prediletas na infância. Na biografia de Jackson do Pandeiro constatamos que a sua leitura preferida (talvez a única) eram os romances de cordel que comprava na Feira de São Cristóvão (RJ). Aliás, na infância, Jackson foi amigo de um ceguinho folheteiro na feira de Campina Grande, de quem teria ouvido muitos romances rimados.
Belchior chegou a mesmo a se apresentar como cantador de feira, fazendo improvisos, ainda no início da carreira. Jorge Mello, piauiense da mesma geração, é cordelista e também faz um show à base do repente. Deu provas disso no programa do Jô Soares. Fagner, Geraldo Azevedo, Elomar todos eles beberam na fonte cristalina do cordel em maior ou menor escala.
De Vital Farias, o exemplo que melhor se enquadra em nossa pesquisa, colhemos interessantes informações em seu próprio “sítio”, mostrando que o cordel teve papel preponderante na sua vida como estudante, como leitor e sobretudo como artista da música, do cinema e do teatro. Vamos pinçar alguns trechos e comentar em seguida:
No começo, em Taperoá
Vital Farias fez seus primeiros estudos em casa, com seus irmãos mais velhos, lendo folhetos de cordel, ainda na Pedra D’Água, sítio onde nasceu, no município de Taperoá – Paraíba. Logo depois, começou seus contatos com a cidade de Taperoá, onde cursou o primário no Grupo Escolar Felix Daltro. Fez exame de admissão e parte do ginásio na Escola Professor Minervino Cavalcanti, que funcionou no mesmo grupo escolar, idealizado pela então benfeitor e amigo de todos nós Dr. Adonias de Queirós Melo (dentista, homem de muito amor pelas causas educativas).
Em entrevista concedida ao jornal O Povo, de Fortaleza, no final da década de 1980, Vital Farias diz que se comunicava por telefone com a mãe, já velhinha, declamando (ele e ela) trechos do folheto de Cancão de Fogo.
Ave de arribação
Migrou para João Pessoa para servir o exército brasileiro (15º Regimento de Infantaria), onde passou dez meses e quinze dias. Saindo do exército, continuou seus estudos no Lyceu Paraibano em plena ditadura militar. Nesse tempo já compunha e já se sentia um cantador, pois as suas origens reclamavam da cultura do seu povo e trazia nas suas memórias, desde criança, muitas cenas em Taperoá e nos sertões vizinhos da profunda covardia do sistema capitalista que esmaga e oprime o trabalhador. Mas, por força das circunstâncias “lei da sobrevivência” formou um conjunto de iê-iê-iê juntamente com Floriano, Cecílio Ramalho e Golinha ao estilo The Beatles, que na época incendiou com suas canções belíssimas o mundo inteiro.
Apesar disso, Vital não se esqueceu das cantigas de seu povo, das ladainhas, das incelenças e cantilenas e paralelamente desenvolvia um trabalho onde contemplava suas origens. E dessas origens a mais forte talvez seja a voz dos folheteiros e as toadas dos cantadores de feira.
Suando a camisa
Na década de 70 foi professor do estado, ministrando aulas de teoria e violão por música, tendo como orientador Fidja Siqueira, Pedro Santos, Gerardo Parentes, Bento da Gama, entre outros. Paulatinamente conviveu e participou no Teatro Santa Rosa de vários trabalhos teatrais: ora como músico, ora como ator, ora como criador. Realizou alguns trabalhos de cinema. Com essa experiência, anos depois já no eixo Rio-São Paulo participou do premiadíssimo filme O Homem que Virou Suco (primeiro lugar no festival internacional de Moscou-1981). Atuou como diretor musical e roteirista poético.
O Homem que virou suco, que tem José Dumont no papel de um cordelista/folheteiro atuando em plena cidade grande, Vital Farias colocou uma carga muito grande de influências do cordel. Uma das canções é a belíssima “Bate com o pé xaxado”, clássico do repertório do artista.
No Pau-de-Arara
Em 1975 rumou para o Rio de Janeiro. Lá chegando, participou da peça do Diretor Luis Mendonça Lampião no Inferno juntamente com Pedro Osmar, seu companheiro de viagem e ex-aluno, Elba Ramalho, Tânia Alves, Kátia de França Imara Reis, Tonico Pereira, Madame Satã, Hélio Guerra, Joel Barcelos, Walter Breda, Damilton Viana, entre outros.
* * *
“A chegada de Lampião no Inferno”, de José Pacheco, tem sido um dos folhetos mais revisitados pelo teatro, a TV e o cinema, embora muito pouco se saiba sobre o seu autor. Texto irreverente, impregnado de bom humor, “A chegada” tem sido vitima ultimamente da ditadura do polticamente correto, porque José Pacheco retratou um inferno cheio de negros. Por outro lado, não há como negar a genialidade de seu autor, que retratou as “profundas” como uma grande repartição pública, com escritórios, gabinetes, livros de ponto etc…
O Vigia disse assim:
- Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro.
- Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro.
(…)
Houve um grande prejuízo
No inferno, nesse dia,
Queimou-se todo o dinheiro
Que satanás possuía
Queimou-se o livro de ponto
Perderam seiscentos contos
Somente em mercadoria.
No inferno, nesse dia,
Queimou-se todo o dinheiro
Que satanás possuía
Queimou-se o livro de ponto
Perderam seiscentos contos
Somente em mercadoria.
O mais curioso é que Lucifer e Satanás, como bons ditadores, botaram o povo para se matar na briga contra Lampião e vieram assistir de camarote, como convém a gente dessa classe:
Lucifer mais Satanás
Vieram olhar do terraço
Tudo contra Lampião
De cacete, faca e braço
E o comandante no grito
Dizia: – Briga bonito,
Negrada, chega-lhe o aço!
Vieram olhar do terraço
Tudo contra Lampião
De cacete, faca e braço
E o comandante no grito
Dizia: – Briga bonito,
Negrada, chega-lhe o aço!
* Publicado originalmente no "Jornal da Besta Fubana"
"A chegada de Lampião no inferno" é também um cordel jornalístico, embora o roteiro seja fictício. Logo na segunda estrofe, Zé Pacheco diz:
ResponderExcluir"E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno nesse dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar"
Em duas estrofes, o autor já antecipa os fatos dramáticos que aconteceram e logo passa a narrar detalhes da chegada. Mais ou menos do meio do cordel para a frente, é que ele narra os acontecimentos propriamente ditos. Ou seja, ele faz uma espécie de lead jornalístico, ou nariz de cera, tão importante no moderno layout do jornal. Genial mesmo!