VICENTE VITORINO DE MELO
No início da década passada, acho que entre 2000 e 2003, correspondi-me com o poeta Vicente Vitorino de Melo, autor e editor do Almanaque do Nordeste e do célebre folheto “Discussão de um crente com um cachaceiro”, um dos melhores do gênero. Imagino que o poeta seja falecido uma vez que se dizia muito doente em suas correspondências, que cessaram bruscamente. Ele era muito atencioso e costumava enviar alguns folhetos de sua autoria, juntamente com alguns originais inéditos. Um deles foi “O príncipe Alípio ou o julgamento de Satanás” que foi lançado pela Tupynanquim Editora. Enviei a porcentagem do poeta e ele me mandou, em seguida, “A filha da peregrina”, texto que venceu um prêmio literário promovido no Estado de Pernambuco. Ele nasceu em Limoeiro-PE no e residia em Caruaru, no mesmo Estado, no período em que manteve correspondência comigo. Certa feita demonstrei interesse em fazer uma edição do clássico “Discussão de um crente com um cachaceiro” e ele, prontamente, respondeu que não podia me conceder tal autorização por haver negociado os originais do dito folheto com o editor Giuseppi Baccário, da Casa das Crianças de Olinda. Gostei da sua sinceridade, coisa que às vezes não ocorre com outros poetas populares.
Eu viajando este mês
Pela linha do agreste
Fui parar em uma feira
No dia de São Silvestre
A feira é fraca e de tarde
Dá cachaceiro por peste...
Nessa dita feira o poeta presencia a discussão de um crente com um cachaceiro. Tudo começa quando o crente passa na calçada de um bar, com uma bíblia na mão e o bêbado imprudente o convida para uma bicada. O crente condena veementemente o seu proceder, porém o cachaceiro não se dá por vencido e usa diversos argumentos em defesa da aguardente:
Você já leu alguns livros
De fabricar aguardente?
Pinga-fogo, Canta-galo...
- Deus me livre! – Disse o crente,
De eu ler certas misérias
Disse o bêbado: - São matérias
De conteúdo excelente!
E, prossegue o cachaceiro, na sua esdrúxula defesa da “branquinha”, sem dar a mínima atenção aos argumentos do crente. Depois de citar o milagre das Bodas de Caná, onde Jesus transformou água em vinho, diz o embriagado:
Você não bebe e nem fuma
Cigarros da Sousa Cruz
Não dança devido a cota
Um baralho não conduz
Que lucro dá ao país?
Você é um infeliz
Não um membro de Jesus!
Quando eu bebo Serra Grande
Eu me lembro da ladeira
Que subiu Nosso Senhor
Num dia de sexta-feira,
Lá foi muito judiado
Eu também sou arrastado
Bebendo a cana rancheira.
Todo domingo na missa
Eu ouço o padre ensinar
Coma pão e beba vinho
Para poder se salvar
Eu ouvindo este sermão
Compro do vinho São João
Bebo dele até topar!
Vicente Vitorino de Melo
Por: Arievaldo Viana
Vicente Vitorino de Melo nasceu em Limoeiro-PE, em 16 de novembro de 1917. Foi cantador de viola até 1950, a partir daí começou a escrever folhetos e publicar um almanaque anual de astrologia - o Almanaque do Nordeste, que existe desde 1952 e ainda sobrevive nos dias atuais. Seu primeiro folheto data de 1948: "O exemplo da asa branca profetizado por Frei Damião". Reside atualmente em Caruaru-PE e possui alguns originais ainda inéditos. Um deles foi publicado pela Tupynanquim Editora: trata-se de "O príncipe Alípio - ou o julgamento de Satanás", onde Vicente demonstra ser um bom poeta de bancada. Sua obra mais conhecida é "A discussão de um crente com um cachceiro", um dos clássicos do gênero.
São de sua autoria os seguintes folhetos: A filha da peregrina, A firmeza de Alzira e o heroísmo de Zezinho, A morte do Coronel Ludugero, As anedotas do finado Antônio Marinho, Discussão de um crente com um cachaceiro, Exemplo dos quatro conselhos, História de Alexandrino e Aulina, História de Luizinho e o velho feiticeiro, Horrores que a Asa Branca traz, João Sabido e o cacetinho mágico, O horror da carestia, dentre outros.
ROMANCE DO PRÍNCIPE ALÍPIO
OU O JULGAMENTO DE SATANÁS
(Trechos)
Entrei no mundo dos contos
Comecei a dar um visto
Onde encontrei uma lenda
Que creio que se deu isto
Há oito séculos passados
Depois da vinda de Cristo.
Nesse tempo, na Itália
Residia um rei bondoso
Humilde e caritativo
De um espírito generoso
E a rainha seguia
O exemplo de seu esposo.
Daquele casal bondoso
Nasceu uma linda criança
Encheu a casa de risos
Os corações de esperança
Daqueles pais que queriam
Dotá-lo com sua herança.
Naquele tempo as crianças
Quer menino, quer menina,
Com dois anos de idade
Mandavam ler sua sina
Pelo Oráculo da Sorte
Pra ver o que determina...
Dizia o Oráculo assim
Com 15 anos de idade
Viajará sem destino
Por sítio, vila e cidade
Estendendo suas mãos
Praticando a caridade.
É um decreto do Alto
Sua peregrinação
Para ver se assim alcança
De Jesus a salvação
Porque é muito sujeito
A uma condenação.
Renunciar a riqueza
Abandonar o governo
Dá esmola, amar ao próximo
Pedir para Deus Eterno
Defender a sua alma
Das profundas do Inferno.
(...)
Quando Alípio completou
Seus 15 anos de idade
O rei chamou a rainha
Pois tinha necessidade
De ali, perante os três
Se descobrir a verdade.
Sentaram-se os três na sala
O rei lhe disse: - Meu filho
Sua vida é um mistério,
Tem um pouco de empecilho
Que para vencer, precisa
Por na vida um novo brilho!
Olhe o Oráculo da sina
Leia aí a sua sorte
A sua vida terrena
E a vida depois da morte;
Um homem pra vencer isto
Precisa ser muito forte!
Alípio disse: - Eu aceito,
De todo meu coração
Se é decreto de Deus
Não tem mais apelação
Amanhã começarei
Minha peregrinação...
Quando foi no outro dia
O rei, com toda coragem,
Preparou-lhe dois cavalos
Um deles com a bagagem
E outro com uma sela
Para seguir sua viagem.
O jovem príncipe viaja e mete-se numa grande enrascada. Uma velha feiticeira o acusa de haver roubado uma taça de ouro. O caso vai a julgamento e o príncipe é condenado à morte:
O rei entregou a velha
O objeto "roubado"
Sendo feito o julgamento
O caso foi encerrado
E condenaram o príncipe
Para morrer enforcado.
Mas o Diabo que sabia
Que o príncipe era inocente,
Apelou para São Pedro
São Gabriel, São Clemente,
São João, São Severino,
São Joaquim e São Vicente.
Porém, sem ordens de Deus
Santo nenhum nada faz,
Foi aí que ouviram todos
A fala de satanás:
- Se me soltares, Miguel
Eu vou salvar o rapaz!
São Miguel disse: - Estás solto
Satanás com uma voz desta
Disse: - O diabo está solto
Hoje eu faço a minha festa
Nunca pensei de ganhar
Umas férias com esta!
O diabo, transformado em Duque, tomou a defesa de Alípio para si porque este, toda vez que acendia uma vela para o Arcanjo São Miguel, acendia também uma velinha para o diabo, que se achava debaixo de seus pés. O rei explica ao “Duque” o motivo da execução do rapaz:
Na casa de uma velhinha
Onde ele estava arranchado
Sumiu-se um copo de ouro,
Segundo eu fui informado,
Pela velha que o copo
O príncipe o tinha roubado.
Logo imediatamente
Mandei a polícia atrás
Disse à velha: - Espere aí
Par ver o que se faz
E o copo foi encontrado
Na bagagem do rapaz!
Levei-o a julgamento
Depois dele haver jurado
Saiu favorável a velha
E o copo foi entregado
O pobre príncipe sem sorte
Hoje vai ser enforcado.
Disse o Duque: - Se não fosse
Ambos haverem jurado
Se fazia um novo apelo
Para ver o resultado
Poderia até salvar
A vida de um condenado!
Pois eu tenho aqui um livro
De pura realidade
No ato do juramento
Descobre a pura verdade
Será infeliz aquele
Que jurar com falsidade.
(...)
Este romance é uma das melhores produções do poeta Vicente Vitorino de Melo e foi editado pela Tupynanquim em novembro de 2000. Quem quiser saber o desfecho da trama, procure adquiri-lo junto aos revendedores dessa editora.
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O Príncipe Alípio e o Julgamento de Satanás recorre a um velho motivo do conto popular, o Helpful Devil (o Diabo ajudante. Silvio Romero registrou A Proteção do Diabo, e Joaquim Luís Sobrinho versou O Príncipe que Trouxe a Sina de Morrer Enforcado. O motivo está em outros romances de Cordel, como A proteção de Diabo, de Eneias Tavares dos Santos, e O Suplício de Ernestina, do Trovador Cotinguiba.
ResponderExcluirNo livro Contos e Fábulas do Brasil, fixei uma variante, O Diabo e o Andarilho.
A versão dos Irmãos Grimm é Os três empregados (Die drei Handwerksburschen), com os protagonistas unidos por um pacto de riqueza no qual não foram negociadas suas almas. Creio ser este Diabo benfeitor uma sobrevivência de antigas deidades ora benfazejas, ora malévolas, pondo-se a serviço dos que lhes prestavam cultos. No mesmo rol estão os gênios da literatura oral dos povos árabes (os djins), conhecidos em todo o mundo graças ao livro das Mil e uma noites.
Nessa mesma linha Marco, o poeta Patativa do Assaré escreveu uma de suas melhores produções em folheto de cordel "Brossogó, Militão e o Diabo". Como se sabe, Patativa é autor de menos de 20 folhetos, porém todos em liguagem correta, sem apelar para o linguajar matuto. Alguns desses folhetos faziam parte do acervo da Lira Nordestina. É o caso de "Aladim e a Lampada Maravilhosa" e "Abílio e seu cachorro Jupi".
ResponderExcluirVicente Viturino de Melo é meu falecido avô e me orgulho muito de fazer parte dele e de carregar o sangue dele em minha veias, Te Amo querido avô de seu neto e fã Geanderson Viturino de Melo.
ResponderExcluirGeanderson Viturino de Melo, meu nome é Camila Teixeira e desenvolvo uma pesquisa no mestrado sobre os almanaques do Nordeste, mais especificamente sobre o de José Costa Leite. Mas me interessa bastante saber um pouco mais sobre o seu avô. Gostaria de saber se posso conversar com você sobre ele. Se você pode me dizer seu email ou coisa do tipo. Entendo também se não quiser. E agradeço desde já a atenção.
ResponderExcluiratenciosamente, Camila.
Me correspondi com o poeta e astrólogo Vicente Vitorino antes de seu falecimento. Cheguei a editar uma de suas obras, O PRINCIPE ALIPIO, um orginal inédito que ele me confiou.
ResponderExcluirArievaldo Viana