Em 1978 meu pai apareceu em casa com um livro maravilhoso que marcou a nossa infância: "POETAS POPULARES E CANTADORES DO CEARÁ", de Alberto Porfírio. Ouço, portanto, falar de Alberto Porfírio desde a minha primeira infância, pois na casa de meus avós aconteciam cantorias e dentre os poetas convidados estavam Alberto, seu irmão José Porfírio e o cantador Antônio Ribeiro Maciel, de Quixeramobim. Minha avó, Alzira de Sousa Lima, colecionava folhetos de cordel e tinha prodigiosa memória.
Meu avô, Manoel Barbosa Lima, também apreciava os cantadores e os folhetos de Cordel. Mas não era de seu agrado que meu pai se tornasse um repentista, pois considerava a profissão incerta. Na verdade ele não queria que meu pai botasse uma viola nas costas e ganhasse o “oco do mundo”, como se dizia na época, longe de suas vistas e de sua proteção paternal.
Em 1978 eu tinha entre 10 e 11 anos de idade, quando meu pai apareceu com uma grande novidade: um livro que marcou profundamente a minha infância e se tornou companheiro inseparável da nossa família até os dias de hoje. Era o Poetas Populares e Cantadores do Ceará, de Alberto Porfírio (Horizonte Editora, 1978), poeta que eu já conhecia de nome e de versos. As rádios costumavam divulgar seus escritos, sobretudo os poemas matutos “A estátua do Jorge” e “Cantiga da Dourinha”, que faziam sucesso na voz do saudoso radialista Guajará Cialdini, fã do poeta e divulgador incansável de sua obra. Outro poema de grande sucesso tinha o curioso título de "Eu gostei mais foi do Cão" e conta a história de um matuto que foi vítima de traição e levou seu único filho, ainda bebê, para ser criado nos matos, para que nunca na vida visse uma mulher!
Guajará declamava com encanto e desembaraço, fazendo com que nos tornássemos, cada vez mais, admiradores da lira maviosa do mestre Porfírio. O escritor Luciano Barreira, autor de Os cassacos, referindo-se à primeira parte de Poetas Populares e Cantadores do Ceará diz que a mesma “é composta de criações poéticas moldadas na simplicidade e na grandeza da poesia mais pura, essa que brota quase sempre de improviso, à sombra do alpendre ou da latada sertaneja. Versos cheios de lirismo e ao mesmo tempo de lições de elevado cunho humano”.
Esse livro, de pouco menos de 150 páginas, é uma obra essencial para todos que amam a poesia popular. Além de apresentar uma série de poemas matutos da lavra do autor, traz ainda dados biográficos de vários cantadores e saborosos fragmentos de cantorias realizadas por outros poetas cearenses.
A seguir trechos do poema EU GOSTEI MAIS FOI DO CÃO:
EU GOSTEI
MAIS FOI DO CÃO
Poema matuto
de Alberto Porfírio
Já faz mais
de doze anos
Qui eu me
intriguei com muié
Pois o que a
minha me fez
Véve com ela
outra vez
Quem
vergonha num tivé.
Agarrei meu fio Zé
E entrei pros mato com ele
Pois quero que ele se crie
Sem cunhincê a mãe dele.
A gente véve
nas mata
Plantando e
fazendo roça
Quando eu
saio pro trabaio
Ele fica na
paioça
Dando di
cumê aos bicho
Fazendo a
comida nossa.
De tempo em tempo
Pra cidade do Coité*
A fim de compra o fumo
A farinha e o café
Mais eu vou mermo sozinho
Em casa eu deixo o Zé
Pois quero que ele se crie
Sem vê diabo de muié!
Doutô, a
minha muié,
Era Maria
Chiquinha,
Cumo eu era
só dela
Pensei que
fosse só minha
Mas ela num
tinha amô
Do jeito que
eu lhe tinha.
(...)
Um dia, lá
numa festa
Um sujeitim
atrevido
Chegou e
perguntô a ela
Se eu era o
seu marido
E ela
respondeu baixim:
- Ele é só
meu cunhicido!
Qui cunhicido, que nada,
Agarrei no braço dela,
Tangi logo ela pra casa
Dei um bom ensino a ela
E ainda amiacei
De entregá-la ao pai dela.
Mais tombém
essa muié
Mim pediu
tanto perdão
Jueiada nos
meus pés
Cuma quem
faz oração
Qui inté que
eu dixe pra ela:
- Num qué
dizer nada não!...
Num faça mais ôta dessas
Qui tá tudo perdoado;
No ôto dia bem cedo
Fui trabaiá no roçado,
Cheguei em casa mei-dia
Cum fome e munto cansado
Ui! Seu dotô, pois estava,
Meu rancho desocupado...
Tinha ela
deixado o Zé
Dento da
rede, incuído
E tinha ido
simbora
Cum aquele
mermo enxerido
Que ela
dixe, em minha frente,
Qui eu num
era o seu marido.
Foi aí qui eu cunhicí
Que as muié tem mandinga,
Quando a gente qué dá nelas
Elas geme e churuminga
Mais dento do coração
É dizendo que se vinga!
Tá vendo,
que muié ruim?
Deixou um
fio inocente
Cum oito
meses de idade
Sozinho, e
cum eu ausente,
Pra ir
simbora com um cabra
Um malandro,
certamente,
Só pruquê
tinha gravata
E tinha ouro
nos dente.
Por isso é que hoje im dia
Eu indo à povoação
Num entro numa bodega
Qui tem muié no barcão
Eu fasto logo prá trás
Arrodeio o quarteirão
Por causa dela eu penso
Qui todas fazem treição!
(...)
"Lira Maviosa" é expressão de quem conhece e trata bem demais a melhor herança que nos deixou Portugal: nossa língua e nossa poética!
ResponderExcluirParabéns, poeta! És um Cabra arretado!!!
Obrigado poeta CHICO LIVINO. Sigamos adiante levando o canto da nossa LIRA MAVIOSA.
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