Em domínio público, obra de Monteiro Lobato
não deve ser
reescrita
Reescrever qualquer parte da obra de Lobato seria
como fechar
o abraço do Cristo Redentor
J. Roberto Whitaker Penteado*, Especial para o Estado
O escritor brasileiro José Bento Monteiro Lobato faleceu em
1948. Decorrem, assim, neste ano, 70 anos de sua partida do mundo dos vivos e -
de acordo com a nossa legislação sobre direitos autorais - toda a sua obra
passa a ser de alguma coisa chamada “domínio publico”.
Ilustração da personagem
Tia Nastácia, protagonista
de algumas polêmicas sobre Monteiro Lobato
Não é a primeira – e certamente não será a última vez que
isso acontece. As obras de muitos outros autores brasileiros e estrangeiros já
passaram por isso, e vêm à memoria, rapidamente, nomes como Machado de Assis,
Mario de Andrade, José de Alencar, Euclides da Cunha, John Steinbeck, Scott
Fitzgerald, Mark Twain, Robert L. Stevenson, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro,
Fernando Pessoa, Emile Zola, Maupassant, Stefan Zweig, Kafka, Tolstoi, entre
muitos outros...
Só que parece estar ocorrendo, com o nosso Lobato –
considerado, com todo mérito, como um dos mais importantes autores de
literatura infantil em todo o mundo – um fenômeno bastante inusitado: de acordo
com diversas matérias e entrevistas recentemente publicadas pela nossa
imprensa, anuncia-se que os seus textos deverão passar por verdadeiras e
concretas correções, alegadamente para que se tornem palatáveis às gerações
atuais e futuras de jovens leitores. Ou, em outras e mais claras palavras:
serão alterados para tornarem-se politicamente corretos...
E não se trata - como se poderia pensar inicialmente - de uma
adaptação ou extensão das narrativas ou dos conhecidos personagens do Sítio do
Picapau Amarelo, para histórias em quadrinhos, peças de teatro, programas de
televisão ou desenhos animados. Isso já vem ocorrendo, há bastante tempo, em
todo o mundo - e os especialistas em Lobato concordam que essas
"liberdades" não prejudicaram o legado cultural do autor. Em certos
casos, até contribuiram para que as suas criaturas e as obras fossem mais difundidas,
recomendadas nas escolas e lidas por um contingente maior de pequenos leitores.
Ilustração: NINO
O que me incomoda é que se fala - e se discute publicamente
com desembaraço - em modificar ou cortar ou modificar, no texto original, todas
as passagens que possam ser consideradas "racistas", como, por
exemplo, as frequentes malcriações da boneca Emília com a sua “fazedora”, a
negra, filha de escravos, Tia Nastácia. A Tia quase que aparece em pessoa,
turbante e avental, como personagem do famoso filme E o Vento Levou (1939), na
figura de Mammy, a empregada da mansão dos O'Hara, que valeu à atriz Hattie
McDaniel o primeiro Oscar outorgado a uma pessoa de raça Negra... ou
"afro-americana".
Narizinho, ou Lucia - a menina do nariz arrebitado (talvez
deficiente física, por isso?) - é criticada por aparecer, (nas inesqueciveis
ilustrações de Voltolino, Belmonte e J. U. Campos), segundo os críticos,
"como uma inglezinha" - quando Lobato (argumentam) a teria descrito
como de pele negra, ao escrever que se rosto tinha a cor do jambo...
Ilustração de Jô Oliveira
Já o garoto Pedrinho, para esses novos críticos, é
considerado como um personagem sem graça, de segunda classe, "porque
Lobato não gostava de meninos" (sic). Pode-se argumentar que o autor quis
reviver, na figura de Pedrinho, sua convivência, na infância, com duas irmãs,
Ester e Judite...
De fato, Pedrinho é dos poucos personagens masculinos do
Sítio. Mas, longe de ser o que se chama hoje de “machista”, Lobato foi
precursor do atual feminismo, ao entregar a liderança do Sítio à avó sábia,
Dona Benta, que tudo administrava com Nastácia. A inegável estrela da obra é
também feminina: a boneca Emilia, “feita” de panos e trapos pela boa Tia e
através de quem ML exprimia as idéias criativas e iconoclastas do seu próprio
alter ego. São do gênero masculino, contudo, dois nobres: o Visconde de
Sabugosa e o Marquês de Rabicó; sem esquecer o sempre ponderado burro
Conselheiro e o fortudo Quindim, o rinoceronte.
Certamente espero que a entrada em domínio público das obras
deste grande brasileiro, multifacetado que foi: escritor, jornalista, pintor,
empreendedor, diplomata, crítico de arte, editor, publicista e agitador (no bom
sentido, de causas geralmente nobres, como o desenvolvimento das nossas
produções de ferro e petróleo) venha a resultar em muitas novas edições de suas
obras, tanto a literatura infantil como as de ficção, os ensaios, entrevistas,
ensaios e palestras – e uma maior difiusão de suas ideias, muitas das quais
anda de grande atualidade para o Brasil e os brasileiros, nos momentos difíceis
que vivemos.
Mas sem censurar ou mexer em uma vírgula sequer dos mais de
50 livros e quase 100 traduções que publicou, entre 1914 e 1948. Reescrever
qualquer parte da obra de Lobato seria como reformar Brasilia, transformar a
Asa Branca em Asa Negra ou fechar o abraço do Cristo Redentor.
*É AUTOR DE 'OS FILHOS DE LOBATO' (ED. GLOBO)
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