Arievaldo Vianna
Perguntei-lhe: - Alma,
quem és?
Disse ela: - Tua amiga,
Vim te dizer que te mude
Aqui não dá nem intriga
Quer ir para o Céu
comigo?
Lá é que se bota
barriga!
Eu lá subi com a alma
Num automóvel de vento
Então a alma mostrou-me
Todo aquele movimento,
As maravilhas mais
lindas
Que existem no
firmamento.
(Uma viagem ao Céu – Leandro Gomes de Barros)
1. Centenário de morte de Leandro
No dia 04 de março de 1918
falecia no Recife, na rua Passos da Pátria, aquele que é considerado o pai do
Cordel Brasileiro, o paraibano Leandro Gomes de Barros, nascido na fazenda
Melancia (então município de Pombal-PB) aos 19 de novembro de 1865. Responsável
pela transição da poesia oral para o formato impresso, autor e editor de uma
obra copiosa e de alto nível, Leandro era considerado, já à sua época, “o
primeiro sem segundo” no reino da poética sertaneja. Outros poetas chegaram a
publicar antes de Leandro, dentre os quais o também paraibano Silvino Pirauá de
Lima e o potiguar João Sant’Anna de Maria, o Santaninha, que já é citado por
Sílvio Romero, em 1880, como autor de folhetos de poesia popular. Porém nenhum
desses teve a projeção do poeta de Pombal, o que mais contribuiu para fixar as
regras desse gênero literário e a sua identidade visual.
2 . Fundador de um gênero literário
A literatura de cordel brasileira surgiu de maneira tardia, porque
antes da vinda da Corte Portuguesa, em 1808, era proibida a existência de
prelos aqui no Brasil. A poesia popular oral ou manuscrita, que já existia
desde os tempos de Agostinho Nunes da Costa, Hugolino do Sabugi, Inácio da
Catingueira e Romano da Mãe D'água, só viria a se servir dos tipos móveis
quando o poeta Leandro Gomes de Barros se mudou da Vila do Teixeira, na
Paraíba, para Vitória de Santo Antão (PE), e passou a editar os primeiros
folhetos nas tipografias de Recife. No Ceará, ainda no século XIX, tivemos o
exemplo do já citado Santaninha e também do Padre Alexandre Cerbelon Verdeixa e
do célebre Juvenal Galeno, que sob o pseudônimo de Silvanus chegou a publicar
alguns folhetos de poesia popular. Entretanto não era uma atividade sistemática
e sequenciada como a empreendida por Leandro, que criou família numerosa
unicamente com a renda advinda de sua produção poética.
Por sua grande contribuição, é considerado o “fundador” da poesia
popular no Brasil e o mais importante poeta de seu tempo, conforme o testemunho
do seu contemporâneo Francisco das Chagas Batista. É também autor de dois
folhetos, dos três que serviram de inspiração para Ariano Suassuna compor O
Auto da Compadecida. São eles: O Dinheiro
- O testamento do cachorro -, de 1909, e O Cavalo que Defecava Dinheiro.
Ilustração: Jô Oliveira
3. Retalhos da infância de Leandro
Leandro ficou órfão de pai aos sete anos, e mudou-se para a Vila
do Teixeira (PB), na companhia de seu tio materno, padre Vicente Xavier de
Farias, que ajudou a criá-lo. Deixou a companhia deste ainda na adolescência,
por se considerar vítima de maus-tratos. A Vila do Teixeira era o berço dos
grandes cantadores do passado - pioneiros do gênero - como Francisco Romano
Caluête (o temido Romano da Mãe D'água ou Romano do Teixeira, que travou peleja
com Inácio da Catingueira), e do famoso glosador Agostinho Nunes da Costa, pai
de Ugolino e Nicandro Nunes da Costa, tidos como os melhores cantadores de seu
tempo.
Informa-nos o escritor Pedro Nunes Filho, autor de Guerreiro Togado, que o Padre Vicente,
além de vigário da Vila do Teixeira, era também professor de latim e
humanidades, o que no passado chamava-se padre-mestre, tendo sido,
provavelmente, o responsável pela educação daquele garoto, que cedo revelou os
seus pendores para a literatura.
Após deixar o Teixeira, por volta de 1880, mudou-se para
Pernambuco, fixando-se inicialmente em Vitória de Santo Antão (PE). Após uma
curta permanência em Vitória, Leandro mudou-se para Jaboatão, onde casou-se com
dona Venustiniana Eulália de Sousa (que se tornou "de Barros"), com
quem teve quatro filhos, segundo informa a pesquisadora Ruth Brito Lemos Terra
em sua obra Memórias de Lutas: Literatura
de Folhetos do Nordeste - 1893 - 1930. Os filhos de Leandro eram Rachel
Aleixo de Barros Lima (que se casou em 1917 com o escritor Pedro Batista, irmão
do também poeta Francisco das Chagas Batista), Herodias (Didi), Julieta e Esaú
Elóy. Este último seguiu a carreira militar, tendo participado da Revolução de
1924 e da Coluna Prestes.
4. A “indústria” do Cordel
Onde situam-se os pontos de confluência entre a
velha literatura ibérica das folhas volantes, pliegos sueltos e folhetos de cordel com o Romanceiro Popular
Brasileiro? Luís da Câmara Cascudo, em 'Cinco livros do povo', fornece boas
pistas, mostrando antigas matrizes utilizadas pelos nossos poetas de bancada
nordestinos nos primórdios da Literatura de Cordel. Alguns textos encontram-se
em prosa, caso da História de João de Calais, outros em quadras atribuídas ao
cego Balthazar Dias, da Ilha da Madeira, dentre os quais a História da
Imperatriz Porcina. Um ciclo curioso na chamada literatura de cordel nordestina
são as fábulas (Casamento e divórcio da lagartixa, A intriga do cachorro com o
gato, A festa dos cachorros, A noiva do gato, dentre outros). Parece que suas
matrizes mais distantes são os famosos 'testamentos de bichos' importados da
Europa pela Livraria Garnier, em meados do século XIX.
Franklin Maxado Nordestino informa que o catálogo de
1811, dos livros importados por Silva Serva, de Salvador-BA, contém toda uma
seção intitulada “Papéis pertencentes a notícias, proclamações, e tudo quanto
pertence às Guerras, Tragédias e Novelas, tudo em brochura”, muitos dos quais
eram folhetos, ou de histórias tradicionais como 'História de Roberto do Diabo'
ou de assuntos mais atuais, como a 'Entrada de Napoleão no inferno'. E os
folhetos portugueses, conhecidos como 'Literatura de Cego', depois que um
decreto de 1779 reservou a sua venda à ambulantes cegos continuavam a ser importados, segundo Maxado,
pela Livraria Garnier, em meados do Século XIX. (Maxado, Franklin O que é Cordel? Editora Queima-Bucha, 2ª.
Edição)
Laurence Hallewell, autor de O livro no Brasil: sua
história (pág. 639) informa que “A primeira impressão no Brasil, das velhas
histórias, foi feita pela Impressão Régia, responsável em 1815 pela História da
Donzela Teodora, em que se trata de sua grande formosura e sabedoria (30
páginas) e pela História verdadeira da Princesa Magalona, com um retrato da
princesa em xilogravura na página de rosto. É perfeitamente razoável que outras
gráficas brasileiras antigas tenham preenchido seu tempo ocioso com a impressão
desse material tão popular e tão prontamente vendável.”
E de se supor que Leandro Gomes de Barros, Silvino
Pirauá de Lima, Francisco das Chagas Batista e João Melchiades Ferreira, só
para citar alguns dos pioneiros da publicação de histórias rimadas no Nordeste,
tenham tido acesso desde a infância à tais publicações, que acabaram se
tornando fonte permanente de inspiração para suas obras. Se tais histórias
chegaram até aqui em prosa, quadra ou mesmo sextilhas, é um detalhe que, em
absoluto elimina a influência ibérica no cordel brasileiro. Paralelo a isso,
circulavam por todo o Nordeste obras como A história do Imperador Carlos Magno
e os doze pares de França e O Martir do
Gólgotha, do romancista espanhol Enrique Pérez Scrish, que tanto
influenciaram os nossos 'cantadores de Ciência' e poetas de bancada do segundo
quartel do Século XIX.
Além dos folhetos populares que circularam no Brasil
desde o século XVIII, dentre os quais situam-se os já mencionados 'Cinco livros
do povo', estudados por Câmara Cascudo, a saber: Donzela Teodora, Princesa Magalona, Imperatriz Porcina, João de Calais
e Roberto do Diabo, uns em quadras, outros em prosa, sabe-se que a Livraria
Garnier, no Rio de Janeiro e a Livraria do Povo (Pedro Quaresma & Cia.) já
apostavam na publicação de algumas historietas rimadas, dentre as quais a
Guerra de Canudos, escrita por João de Sousa Cunegundes e uma história da
Guerra do Paraguai, em versos, elaborada pelo cearense João de Sant’Anna Maria,
o Santaninha, conforme atesta um estudo publicado pelo historiador José
Calasans, intitulado “Canudos na literatura de Cordel”.
Entretanto, nada se compara ao tino comercial, ao
estro prolífico e a persistência de Leandro Gomes de Barros, que pode ser
considerado o verdadeiro fundador da literatura popular em versos no Nordeste
Brasileiro. Leandro, que optou por viver unicamente de escrever e vender a sua
poesia, conforme atesta Câmara Cascudo, fez com que fossem criados pontos de
venda em vários Estados brasileiros, fazendo com que sua produção se espalhasse
por todo o país, sobretudo nos estados do Norte-Nordeste. No início do século
XX, as distâncias quase intransponíveis deste país continental foram aos poucos
se reduzindo com a implantação de uma boa malha ferroviária, além da navegação
marítima e fluvial. Quando Leandro faleceu, em 1918, o avião já havia sido
largamente utilizado na 1ª Guerra Mundial e o automóvel começava a se
popularizar.
Quando Leandro faleceu, a poesia popular impressa já
estava consolidada e consistia num negócio bem lucrativo. Além dele, já atuavam
com desenvoltura os irmãos Chagas e Pedro Baptista (da Popular Editora) e o
iniciante João Martins de Athayde, que viria a se tornar o maior editor do
gênero, após adquirir os direitos da obra de Leandro e outros grandes poetas
daquela época.
Fabiano Chaves (óleo sobre tela)
5. A morte do poeta
Do mesmo modo que a sua vida, a morte de Leandro também é envolta
em lendas e controvérsias. Há pelo menos umas quatro versões para esse fato. O
jornalista Permínio Ásfora, em artigo publicado no Diário da Noite do Recife,
em 13 de dezembro de 1949, intitulado "Crise no romanceiro popular",
diz o seguinte:
“Trechos
de sua vida são lembrados ainda hoje. Contam que já morava aqui no Recife
quando um senhor de engenho, indignado com um morador, resolveu aplicar neste
uma sova de palmatória. (...) Um dia o senhor de engenho é surpreendido por
violenta punhalada vibrada pela mesma mão que levara seus bolos. O poeta
Leandro aproveita o caso policial, transformando-o em folheto que era um libelo
contra o senhor de engenho. Descreve em "O punhal e a palmatória",
com calor e simpatia, a inesperada vindita. O chefe de polícia, enfurecido com
a literatura de Leandro, manda metê-lo na cadeia. Apesar de folgazão, Leandro
era homem de muita vergonha e de muito sentimento. E como naquele já distante ano
de 1918 a cadeia constituía uma humilhação, à humilhação da cadeia sucumbiu o
grande trovador popular.”
Outros pesquisadores afirmam que Leandro morreu vítima da
influenza espanhola, uma gripe mortífera que assolou o Brasil no início do
século passado. Egídio de Oliveira Lima, por sua vez, diz que Leandro morreu
"de uma enfermidade que o havia atacado uns dez anos antes" (Lima,
1978: 156), e no seu ATESTADO DE ÓBITO consta como causa mortis ANEURISMA.
Cristina da Nóbrega, seguindo pistas fornecidas pelo autor destas
linhas, pesquisou nos cartórios do Bairro de São José, no Recife, e localizou o
livro onde está assentada a CERTIDÃO DE ÓBITO do grande poeta. Algumas
informações curiosas, prestadas por seu filho Esaú Eloy de Barros Lima (quem,
por sinal, assina o documento), são bem reveladoras. Ele informa que seu pai
tinha 58 anos de idade, e não 53, na data de seu falecimento, o que remete seu
nascimento para 1860, ao invés de 1865, data divulgada oficialmente. Diz que
Leandro era filho de José Gomes de Barros Lima e Adelaide Gomes de Barros (seu
nome de solteira era Adelaide Xavier de Farias). Era comerciante, faleceu na
rua Passos da Pátria, bairro de São José, às 9h30 da noite do dia 4 de março de
1918, tendo como causa mortis
aneurisma. Nessa data, Rachel Aleixo de Barros Lima, a filha mais velha, tinha
24 anos, Esaú Eloy, o declarante, 17 anos, e as suas irmãs Julieta (na certidão
está grafado erroneamente Juvanêta, noutros documentos aparece grafada também a
forma Giovaneta) e Herodias eram também menores.
Após a morte de Leandro, seu genro Pedro Batista (irmão de Chagas
Batista e esposo de Rachel Aleixo de Barros) continuou editando a obra do sogro
em Guarabira (PB), fazendo algumas revisões de linguagem, entre 1918 e 1921. Finalmente
em 1921, após desentender-se com o genro, a viúva do poeta, Dona Venustiniana
Aleixo de Barros, vendeu seu espólio literário a João Martins de Athayde.
6. Autor de clássicos do gênero
O estilo de Leandro é inconfundível. Ele teve fôlego para
transitar em todos os gêneros e modalidades correntes: peleja, romance,
gracejo, crítica social, e o fez com maestria. Poucos conseguiram igualar-se.
No geral, ninguém o superou até hoje. Dentre as suas obras mais expressivas
destacam-se Juvenal e o dragão, Batalha
de Oliveiros com Ferrabrás, A vida de Pedro Cem, A Donzela Teodora, Peleja de
Manoel Riachão com o Diabo, O soldado jogador, O cachorro dos mortos, Interragatório
de Antônio Silvino, A vida de Cancão de Fogo e seu Testamento, todos
considerados verdadeiros clássicos do Cordel.
Arievaldo Vianna
Poeta popular, criador do projeto Acorda
Cordel na Sala de Aula
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Santaninha – Um poeta popular na capital do Império, Editora IMEPH, 2017.
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