Caricatura: Gervásio
UM ANO SEM BELCHIOR,
UM COMPOSITOR ALÉM DE SEU
TEMPO
Transcrito do blog 247
Gustavo Conde(*), 247
A música popular brasileira tem em Belchior um de seus momentos mais
densos. O compositor cearense impôs ao cancioneiro brasileiro uma temática
complexa, ousada e de forte apelo popular. As letras de Belchior ultrapassam a
força da própria canção e invadem o regime das citações sociais de maneira fragmentária e destacada.
É uma organização discursiva espontânea e
singular, muito pouco comum para um letrista pertencente ao universo da
indústria fonográfica e à cultura popular das narrativas urbanas. Belchior
ultrapassa fronteiras formais, instala uma voz poderosa na cena musical e cria
um discurso filosófico repleto de intertextos que violenta a percepção do
ouvinte tradicional da canção, sugerindo uma ação crítica deste ouvinte, seja
com relação a sua existência enquanto sujeito da história, seja com relação à
própria canção, numa dialética complexa e de caráter mobilizador.
Belchior escolhe com muita precisão a temática
que vai servir de condutor para esta pletora de sentidos. Ele faz uso, em
primeiro plano, da história. Suas canções são fortemente contextualizadas no
tempo e no espaço. O Brasil dos anos 70 está lá como em poucos outros lugares:
as migrações internas, o preconceito, a utopia, a opressão, a cultura como
fonte de resistência, a plurivocalidade da canção popular (que se desdobra em
tema), a cena familiar e passional típicas de um regime de exceção e exclusão,
a amizade revolucionária, a sutileza avassaladora das metáforas que driblam a
censura do próprio ‘eu’, enfim, uma organização temática que vai produzir um
significado muito peculiar de unidade formal, porque, dentro da sua
multiplicidade, vai servir sempre a um sentido fundador e onipresente: o
sujeito que não se enquadra nas convenções sociais mas que ao mesmo tempo as
respeita e as investe de delicadeza e humanidade.
Em um segundo plano formal, Belchior constrói
scripts que conduzirão toda a sua obra de maneira quase obsessiva. Ele lida com
dicotomias retoricamente muito poderosas e geradoras de energia narrativa: o
velho e o novo, o passado e o presente, o conhecido e o desconhecido, o
contemplado e o contemplador, o cantor e o ouvinte, a origem e o fim, o popular
e o erudito e a urgência e o vagar.
Todos esses contrários são as molas narrativas
que lançam em cena um sujeito tomado por uma tensão filosófica incessante, que
estabelece um regime de temporalidades psicológicas vertiginoso, em que os
espaços para distensão serão os momentos de resolução das canções, em geral
seus finais, em que o eu cancional consegue respirar em meio às suas infinitas
indagações existenciais.
Belchior também postula um eu cancional dotado
de extrema personalidade, persuasivo, invocador, mobilizador, atentador. Um eu
que quer o tempo todo tocar e invadir o espaço de seu outro, seja o objeto
desejado na canção, seja o próprio ouvinte da canção. Isso se materializa numa
dicção fortemente interpelativa, interlocutória, dialógica. O eu belchioriano é
invasivo, revolucionário e dotado de extrema energia simbólica e física – pois
ele busca e se debruça via sub narrativas nesse ‘outro’ que habita a canção.
O eu belchioriano, no entanto, vai além. Ele se
estilhaça e promove um discurso polifônico, distribuindo a voz múltipla que
habita o coração do compositor. A potência de um eu tão complexo e, por vezes,
difuso acaba por configurar uma voz extremamente inquieta, como sói acontecer,
por exemplo, em Dostoiévski. O eu cancional de Belchior adentra essa
sofisticação literária e possibilita essa multiplicidade vocal que, como em
Dostoiévski, pode, às vezes, ceder espaço autoral às próprias criações que
emanam de uma mente concreta e localizável no mundo (Antonio Carlos Belchior
e/ou Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski). Em suma, em alguns momentos um dos
vários eus coadjuvantes de Belchior toma posse da narrativa cancional e joga o
protagonista para uma posição narrativa secundária (isso acontece em
“Paralelas”).
Belchior, portanto, não propõe um eu cancional
onipresente apenas: ele propõe um regime de eus. Outra consequência dessa
formalização enunciativa é uma voz concreta do intérprete de si mesmo Belchior
que acabou por se tornar uma referência estética de projeção vocal. Belchior
fala enquanto canta. Ele discursa, acelera os tempos, comprime a prosódia,
amplifica a métrica, modula a colocatura, busca a “falha” como expressão,
adensa o timbre, manipula o curso natural das resoluções rítmicas, raspa a
glote em busca de profundidade passional, alterna coloquialismos, inverte
posições sintáticas – aqui, já numa contaminação de sua própria concepção intelectiva
das canções como unidades de sentido e de tensão.
Por fim, Belchior inaugura um ethos cancional
peculiar, comum aos desbravadores de sentido, por assim dizer. Um ethos é um
modo de dizer, uma dicção específica dotada de um tom específico que produz um
efeito novo com relação ao conteúdo ali propagado. A título de ilustração, eu
colocaria entre os desbravadores de sentido, Darwin, Freud e Marx. Esse autores
não foram só autores: eles fundaram discursividades, com suas respectivas
maneiras de narrar as próprias descobertas científicas.
À sua maneira, Belchior é um fundador de
discursividade. Ele planeja sua peça cancional dentro de um rigor estético
muito evidente, mas ao interpretar a si mesmo com sua voz única, ele
intensifica ainda mais o sentido geral de seu enunciado.
Belchior é até mais que um intérprete de si
mesmo no sentido estrito. Sua própria vida foi tomada pela força de sua obra.
Como suas letras já relatavam uma autobiografia fragmentária que se confundia
com sua própria vida de compositor e cantor celebrado na cena musical, o
desdobramento de ambas, vida e obra, tomou o destino de assalto.
Belchior que amou viajar pelo Brasil e fez
disso um tema recorrente em suas canções, acabou ele mesmo confinado em um país
vizinho – o Uruguai – para viver seus momentos finais como indivíduo de carne e
osso. Projetos interrompidos, legado mal resolvido, legiões de fãs órfãs antes
mesmo de sua despedida, tudo isso poderia muito bem compor um desdobramento de
sua temática cancional. Aliás, de uma certa maneira, tudo isso está lá,
edificado em versos premonitórios e de raríssima beleza e força.
(*) Gustavo Conde é músico, linguista e
professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido
político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos,
acadêmicos e literários.
Nenhum comentário:
Postar um comentário