quinta-feira, 12 de outubro de 2017

MINHA ESCOLA DA INFÂNCIA


Nessa casinha funcionou a escola onde recebi as melhores lições desta vida.

Hoje, 12 de outubro, Dia da Criança, resolvi prestar uma homenagem às minhas professoras da infância, em especial à minha tia Heliodória, responsável pela minha educação entre os anos de 1975 e 1977. Dedico essa crônica a todos os meus companheiros de escola: Oswaldo, Marquinhos, Totonho, Walberto, Dário José, Evaldo, Ana Clara, Vânia, Isabel Cristina, Marly e Joana D'Arc Calixto (in memórian). Vejam se está no prumo:


Minha querida professora, Heliodória de Sousa Lima (Dodóia)


DECIFRANDO O BÊ-A-BÁ

(A ESCOLINHA DA ‘DODÓIA’)

Aprendi em casa as primeiras letras, motivado, principalmente, pelo desejo de ler ‘versos’ e ‘romances’, nomes pelos quais a minha avó conhecia os folhetos de Literatura de Cordel. Os meus prediletos eram Juvenal e o Dragão, Princesa da Pedra Fina, A vida de Cancão de Fogo e o seu testamento, A chegada de Lampião no Inferno e As proezas de João Grilo. Desde os cinco anos (ou antes disso), eu prestava muita atenção nas leituras que minha avó fazia em voz alta, para uma roda de ouvintes, à luz de um lampião a gás. De tanto pedir que ela repetisse tais leituras (quase sempre os mesmos títulos) ela resolveu que já era tempo de me alfabetizar.
Trouxeram uma Carta de ABC daquelas antigas, de Landelino Rocha, onde se aprende inicialmente o alfabeto maiúsculo, depois o minúsculo e, finalmente, começa-se a juntar as sílabas. Eu estava tão empenhado nisso que aprendi em pouco tempo. Minha avó tinha umas técnicas interessantes. Uma delas era pegar uma folha de papel em branco, fazer um pequeno orifício no centro, por onde se avistasse somente uma letra da cartilha, para que o menino a reconhecesse sem associá-la com as letras vizinhas. Mais tarde, quando eu já estudava com minha tia Heliodória, tinha dificuldade de decorar a sequência correta dos planetas do Sistema Solar, tendo por base a distância de cada um em relação ao Astro Rei. Ela me repassou uma fórmula infalível, que aprendera no colégio das freiras, em Canindé:
Meu filho, é muito simples. Decore esta frase: “Minha Velha Traga o Meu Jantar. Sopa, Uva, Noz e Pão. Minha = Mercúrio, Velha = Vênus, Traga = Terra, Meu = Marte, Jantar = Júpiter, Sopa = Saturno, Uva = Urano, Noz – Netuno e Pão = Plutão.


Vó Alzira

Hoje em dia os astrônomos acharam por bem retirar o pão do jantar, certamente para diminuir as calorias da refeição planetária. Ou, quem sabe, por contenção de despesas, já que se fala tanto em crise atualmente. Eu, de minha parte, não acho que uvas e nozes sejam um bom acompanhamento para um jantar a base de sopa. Prefiro o pão.
Vovó costurava e dava aulas ao mesmo tempo. Passava a lição e voltava para a sua máquina de costura. Quando não podia me acompanhar na tarefa, incumbia minha tia Augediva desse mister. Havia uma escola na casa velha da Morada Nova mas eu não frequentava, porque além de ser distante, diziam que por lá ainda persistia o velho castigo da palmatória e minha tia não queria me expor a esse vexame.

* * *

Pois bem. Depois que “desasnei” nessa escola caseira e bem informal, fui encaminhado à escola da Terezinha Terceiro de Araújo, uma moça contratada pela Prefeitura de Quixeramobim para manter uma escola chamada Ismael Pordeus, historiador nascido em nosso município que fez um ótimo livro comparativo da obra de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço, com um episódio real ocorrido no século XIX, o crime de Marica Lessa. A Escola Ismael Pordeus existia de fato, mas não de direito. Não tinha prédio próprio. A professora ensinava em sua própria casa, no turno da manhã, e a tarde ensinava outra turma na sala da casa do meu tio José Oswaldo que era bem ampla e espaçosa, iluminada por duas portas e três janelas. Tal iniciativa devia-se ao fato de que metade dos alunos eram filhos do meu tio e os demais sobrinhos ou filhos de amigos que moravam na vizinhança. Isso foi no correr do ano de 1974.
Em 1975 minha tia Heliodória, recém-chegada do Rio Grande do Norte, onde estivera internada em colégio de freiras, resolveu abrir uma escola para ensinar os sobrinhos. Primeiramente funcionava na sala da casa do meu avô, com poucos alunos. Depois passou para uma casinha de taipa que ainda hoje está de pé. Essa casinha servia de escola e moradia, pois ela era recém-casada e nascera-lhe a primeira filha, Clara Artures (que eu chamava de Tuinha), que por sinal é minha afilhada. Digo sem demagogia que foi a melhor escola que frequentei em toda a minha vida, de onde retirei o maior proveito, aliado ao fato de estar perto dos meus, cercado de carinho e atenção.
A professora tinha um jeito doce e maternal para com todos, sem distinção, e pleno domínio das matérias que estudávamos. Tanto que ela reunia na mesma classe alunos do segundo, terceiro e quarto ano letivo, distribuindo as tarefas de cada um, sem perder o fio da meada. Eu e o Marquinhos fomos os únicos que ganhamos apelidos da professora: Dodóia me chamava de borrego preto e o Marquinhos era o borrego melado. Em 1977, a Tuinha, que já aprendera a falar e era uma verdadeira pimenta, já aprendera os nossos apelidos. Também pastorava as pessoas que passavam na estrada para puxar conversa. Uma vez, flagrei o seguinte diálogo da Tuinha com Vanilda, uma moça que morava nos Três Irmãos:
— Ei, Vanilda! Vai pra onde?
— Oi Tuinha, vou ali na bodega...
— Vanilda, passe por aqui, venha tomar um cafezinho.
Ora vejam só, que criança hospitaleira. E olhem que essa pestinha devia ter, no máximo, uns dois anos quando aprontou essa.

Eis a turma que estudava na “Escolinha da Dodóia”, em 1976/77: Totonho, Oswaldo e Marquinhos (filhos do José Oswaldo); Dário José e Walberto (filhos do tio José Viana); Vânia, da tia Mily; Isabel Cristina, da Cleide Viana; Ana Clara e Evaldo (filhos do primo José Augusto Viana); Marly, do Raimundo Viana e Joana D’arc Calixto (Era filha do Antônio Calixto. Faleceu precocemente, vítima de um câncer letal). D'arc era um amor de pessoa, muito simpática, risonha, e tinha um sinalzinho no rosto. Ela, Ana Clara, Vânia e Marly eram todas pré-adolescentes. Deviam ter entre 12 e 15 anos na época. Eu só tinha 8 anos, era um inocente, mas bem que gostava da companhia das meninas. Quantas vezes não suspendi a minha tarefa para me enlevar com o sorriso da Joana D’arc? Os meninos do tio José Viana, Dário e Walberto já pensavam em namoro, eram mais velhos que eu. Na opinião geral, eu ainda fedia a mijo, embora não tivesse o hábito de mijar na rede. Não obstante, todos admiravam a minha inteligência e ótimo desempenho em quase todas as matérias, embora fosse o caçula da classe. Foi, sem sombra de dúvidas, o lugar onde estudei com mais prazer e dedicação em toda a minha vida.

5 comentários:

  1. "“Minha Velha Traga o Meu Jantar. Sopa, Uva, Noz e Pão. Minha = Mercúrio, Velha = Vênus, Traga = Terra, Meu = Marte, Jantar = Júpiter, Sopa = Saturno, Uva = Urano, Noz – Netuno e Pão = Plutão" Ari, não conhecia essa frase bem criativa de sua professora mas com certeza um método bem prático para se memorizar a ordem dos planetas.

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  2. Amigo Arievaldo Viana, sua crônica é deveras emocionante. Apesar de termos uma diferença de idade muito grande, posso dizer-lhe que a minha primeira escola assemelhava-se à sua. Minha inesquecível professora, a Dona Naninha, ensinava-nos (alunos de todas as idades, na mesma sala), a Cartilha, as operações de conta... Depois vieram o Sol, a Lua e as Estrelas... Ensinava-nos Religião e respeito aos Pais e aos Mestres. Lá, não havia a preocupação de ensinar sexo. Aliás, nós nem sabíamos o que era isso, pois nossas brincadeiras (meninos brincavam com as meninas e vice-versa), era pular corda, arrastar carros de lata cheios de areia, rodar pião, bater peteca, fazer batizado das bonecas, cantigas de roda e folguedos assim. Hoje, com essa invenção de erotizar as crianças, certamente, nem as escolinhas rurais terão o mesmo encanto das escolinhas da nossa época. Felizes somos nós dois que tivemos uma infância regida pelo Amor e pela Moral, que preservaram a nossa inocência. O Amor e a Moral são os responsáveis por esse nosso estado atual de saudade de um tempo em que nós éramos as criancinhas puras que alegravam a vida dos nossos pais. Grande abraço.

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    1. É verdade, Lucineide. Também tenho muita saudade da escola de minha infância e das brincadeiras saudáveis daqueles tempos. A primeira vez que vi um aparelho de TV eu já tinha uns dez anos. Quando vi o sertão ser invadido por antenas parabólicas, aparelhos de TV e telefones celulares, sem que o povo recebesse uma educação sólida, eficaz, voltada para a profissionalização, percebi que a coisa ia muito mal, como de fato vai. O sertão de hoje não tem muita diferença das favelas das grandes cidades.

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  3. Sim, você tem toda a razão. O meu sertão, Crateús, de onde saí com 7 anos, jamais morrerá, pois ali ficaram os melhores momentos da minha infância. Não havia luz, senão lampiões pendurados à parede, exalando um forte cheiro de querosene, cujo odor nunca me abandonou as narinas. Depois, pelo ano 51, aí sim, a light instalou essa maravilha em nossa casa, então um velho rádio, da época da guerra, ensinou-me "Sá Mariquinha", "Luar do Sertão", "O Ébrio", "Sr. da Floresta", "Rosa" "Noite Cheia de Estrelas", "Adeus" "Índia", "Perdão Emília" "Caminhemos", "A Santa Cruz do seu Rosário", "Casa Branca da Serra", e outras belas canções. Embora a luz fosse boa, nunca deixei de fitar a Lua nem as estrelas,pois elas fazem parte dos meus primeiros sonhos. Como era belo ver a noite prateada derramar-se nas águas do Poty, antes que elas fugissem para o Piauí. Nossa, meu Deus, quanta saudade de todo o que eu tive, quando talvez, não tivesse nada. Grande abraço Canção de fogo. Tenho um conto com esse nome. Deus te proteja, sempre, sempre.

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  4. É muito bom contar com uma leitora do seu nivel, Lucineide Souto. Uma pessoa que conhece profundamente o sertão e que não perdeu suas raízes. Sinto-me, cada vez mais, estimulado a falar desse universo mágico em meus escritos, tanto em prosa, quanto em poesia. Esse texto é parte integrante do meu novo livro, NO TEMPO DA LAMPARINA, que será lançado até dezembro deste ano.

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