Ilustração de Severino Ramos
para o livro Contos e fábulas do
Brasil
Ilustração de Severino Ramos
para o livro Contos e fábulas do Brasil |
Uma vez havia um pai que tinha três filhos, e, não tendo outra cousa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando eles quiseram sair de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recomendado que não abrissem as frutas senão em lugar onde houvesse água.
O mais velho dos moços, quando foi ver
o que dava a sua sina, estando ainda perto de casa, não se conteve e abriu a sua
melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita, dizendo: "Dai-me água, ou
dai-me leite". O rapaz não achava nem uma coisa nem outra; a moça caiu para trás
e morreu.
O irmão do meio, quando
chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu também a sua
melancia, e saiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu água
ou leite, e o rapaz não achando nem uma coisa nem outra, ela caiu para trás e
morreu.
Quando o caçula partiu
para ganhar a sua vida, foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma
fonte. No abri-la pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas
primeiras, e foi dizendo: "Quero água ou leite". O moço foi à fonte, trouxe água
e ela bebeu a se fartar. Mas a moça estava nua, e então o rapaz disse a ela que
subisse em um pé de árvore que havia ali perto da fonte, enquanto ele ia buscar
a roupa para lhe dar. A moça subiu e se escondeu nas
ramagens.
Veio uma moura torta
buscar água, e vendo na água o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse
o seu e pôs-se a dizer: "Que desaforo! Pois eu sendo uma moça tão bonita, andar
carregando água…!" Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa
sem água e nem pote levou um repelão muito forte, e a senhora mandou-a buscar
água outra vez; mas na fonte fez o mesmo, e quebrou o outro pote. Terceira vez
fez o mesmo, e a moça, não se podendo conter, deu uma
gargalhada.
A moura torta, espantada,
olhou para cima e disse: "Ah! É você, minha netinha!… Deixe eu lhe catar um
piolho". E foi logo trepando pela árvore arriba, e foi catar a cabeça da moça.
Infincou-lhe um alfinete, e a moça virou numa pombinha e avoou! A moura torta
então ficou no lugar dela. O moço, quando chegou, achou aquela mudança tamanha e
estranhou; mas a moura torta lhe disse: "O que quer? Foi o sol que me queimou!…
Você custou tanto a vir me buscar!"
Partiram para o palácio,
onde se casou. A pombinha então costumava voar por perto do palácio, e se punha
no jardim a dizer: "Jardineiro, jardineiro, como vai o rei, meu senhor, com a
sua moura torta?" E fugia. Até que o jardineiro contou ao rei, que, meio
desconfiado, mandou armar um laço de diamante para prendê-la, mas a pombinha não
caiu. Mandou armar um de ouro, e nada; um de prata, e nada; afinal, um de visgo,
e ela caiu. Foram levá-la, que muito a apreciou. Passados tempos, a moura torta
fingiu-se pejada e pôs matos abaixo para comer a pombinha. No
dia em que deviam botá-la na panela, o rei, com pena, se pôs a catá-la, e
encontrou-lhe aquele carocinho na cabecinha, e, pensando ser uma pulga, foi
puxando e saiu o alfinete e pulou lá aquela moça linda como os amores. O rei
conheceu a sua bela princesa. Casaram-se, e a moura torta morreu amarrada nos
rabos de dois burros bravos lascada pelo meio.
(Versão de Sílvio Romero,
publicada em Contos populares do
Brasil)
Ilustração de Warwick Goble para a versão inglesa do Pentamerone |
Nota à versão colhida em
Serra do Ramalho Bahia e reproduzida no livro Contos e fábulas do
Brasil: A Moura Torta é
um conto que só não se espalhou pelos quatro cantos da Terra porque esta é
redonda. Sílvio Romero e Câmara Cascudo divulgaram versões muito conhecidas. A
nossa variante aproxima-se da versão de Romero no tocante à quantidade de fi lhos
do rei, três, com a sorte invariavelmente sorrindo para o caçula. Como na versão
de Câmara Cascudo, o herói recebe três laranjas de uma velhinha, que desempenha
a função de “doador mágico”. Ressalte-se ainda em nosso conto a jocosidade por
meio da sede pantagruélica da princesa, que salta da laranja onde estivera, por
conta de um feitiço, aprisionada, e do engano da Moura Torta, que julga ver no
refl exo da princesa seu rosto desagradável. Segue-se o encanto da princesa em
pomba, por meio de um alfinete mágico (“envenenado”), um motivo oriental presente
nas Mil e uma noites. Original em nosso conto é o apêndice, que não consta de
nenhuma variante conhecida e é motivo de riso para as crianças. Ítalo Calvino,
nas Fábulas italianas, redigiu O amor das três romãs, citando como
a mais antiga versão literária I tre cedri (As três cidras),
do Pentamerone de Giambattista Basile. Afanas’ev recolheu, na
Rússia, A pata branca, onde a metamorfose da princesa em ave se dá após
esta banhar-se numa fonte, por instigação de uma feiticeira, que assume o seu
lugar, até a descoberta do malefício e o castigo final. A noiva branca e a
noiva preta, dos Grimm, com a heroína enfeitiçada em uma “patinha branca
como a neve”, aproxima-se da versão russa.
(Marco
Haurélio)
Trecho da versão em cordel
publicada pela Editora Luzeiro, de São Paulo:
Oh, Deusa da
poesia,
Meu verso agora te
exorta,
Do Reino da
Inspiração
Abre-me a sagrada
porta
Para eu versar a
famosa
História da Moura
Torta.
Num reino muito
distante
Houve um monarca
afamado,
Pai de três belos
rapazes,
Orgulho do tal
reinado.
O rei, por possuir
tudo,
Vivia bem
sossegado.
Porém o filho mais
velho,
Que se chamava
Adriano,
Certo dia foi ao
pai,
Com um desejo
insano
De conhecer outras
terras,
Além das do
soberano.
O rei lhe disse: - Meu
filho,
Aqui não lhe falta
nada...
O mundo, pra quem não
sabe,
É uma grande
cilada;
Tire da sua
cabeça
Esta ideia
tresloucada.
O moço disse: - Meu
pai,
Já escolhi meu
roteiro.
O rei lhe disse: - Então
vá,
Mas tem de escolher
primeiro:
Muito dinheiro sem
bênção,
Muita bênção sem
dinheiro.
Disse o moço: - Bênção
não
Enche o bucho de
ninguém!
Não sou doido de
sair
De casa sem um
vintém.
Eu quero é muito
dinheiro,
Pois bênção não me
convém.
O rei deu para o
rapaz
A sua parte da
herança.
Ele saiu pelo
mundo,
Sem achar que fez
lambança.
Na embriaguez da
orgia
Gastou tudo sem
tardança.
Assim, voltou para a
casa,
Muito roto e
maltrapilho.
O rei, que era
bondoso,
Inda recebeu o
filho;
Porém o filho do
meio
Quis seguir no mesmo
trilho.
O filho do meio
tinha
O nome de
Cipião;
Este também foi ao
pai
Para pedir
permissão
Pra conhecer outras
terras
Além daquela
nação.
O moço disse: - Meu
pai,
Agora é a minha
vez.
Mas o velho disse:-
Filho,
Deixe desta
insensatez!
Não vá fazer mais
tolice
Como Adriano já
fez.
Como não o
demovia,
O rei perguntou,
ligeiro:
- Queres dinheiro sem
bênção?
- Queres bênção sem
dinheiro?
O infeliz Cipião
Fez igualmente ao
primeiro.
O moço lhe disse: - Eu
quero
Dinheiro em
demasia,
Bênção e chuva no
mar
Não têm qualquer
serventia!
E sem a bênção
paterna
Viajou no mesmo
dia.
O rapaz pagou bem
caro
O preço da
imprudência,
Pois perdeu todo o
dinheiro,
E, ficando na
indigência,
Voltou pra casa
esmoler,
Implorando ao rei
clemência.
O rei recebeu o
filho,
Pois tinha bom
coração,
Mandou servir um
banquete
Ao indigno
Cipião,
Que, ao recusar a
bênção,
Sucumbiu à
maldição.
Passados uns onze
meses,
Foi o rei
interpelado
Pelo seu filho
caçula,
Que estava
interessado
Em conhecer outras
terras
Para além de seu
reinado.
Então, o jovem
Hiran
Foi procurar o seu
pai,
Mas ele disse: - Meu
filho,
Sinto, mas você não
vai,
Pois quem procura o
abismo,
Tarda, mas um dia
cai!...
O moço disse: - Meu
pai,
Aos meus irmãos
permitiste.
Se me recusares
isto,
Eu ficarei muito
triste
Por não conhecer o
mundo
Que além daqui
existe.
O rei retrucou: -
Hiran,
Teus irmãos já
viajaram;
Tudo a que tinham
direito
Na orgia
dilapidaram.
Quando estragaram tudo,
Na indigência
voltaram.
Hiran disse: - Meu bom
pai,
Sempre fui
obediente,
Mas tenho
necessidade
De correr o mundo
urgente.
Contudo, eu lhe
asseguro:
Desta vez é
diferente.
O rei lhe disse: - Está
bem,
Mas tenho de
perguntar:
Tu queres muito
dinheiro,
Mas sem eu lhe
abençoar?
Ou vais querer muita
bênção,
Mas sem dinheiro
levar?
Hiran respondeu: - Meu pai,
De nada posso lucrar
Do dinheiro, se a bênção
De meu pai eu não levar.
O rei o abençoou
E o deixou viajar.
(...)
In: Marco Haurélio, Meus romances de cordel, São
Paulo: Global, 2011, págs. 139-143.
Sobre a moura-torta anote-se o que disse Gilberto Freyre em sua obra mais citada:
ResponderExcluir"Em oposição à lenda da moura encantada, mas sem alcançar nunca o mesmo prestígio, desenvolveu-se a da moura-torta. Nessa, vazou-se porventura o ciúme ou a inveja sexual da mulher loura contra a de cor. Ou repercutiu o ódio religioso: o dos cristãos louros descidos do norte contra os infiéis de pele escura. ..."