ILUSTRAÇÃO: JÔ OLIVEIRA
Hoje, 29 de julho, completam 50 anos
do desaparecimento daquele que é considerado um dos mais importantes poetas
populares nordestinos, Aderaldo Ferreira de Araújo - o famoso Cego Aderaldo.
Citado pelos cantadores com um dos pilares da trindade mítica do Nordeste,
aparece nesse mote de sete sílabas:
“SÃO TRÊS VULTOS QUE SEMPRE ADMIREI
PADIM CIÇO, ADERALDO E LAMPIÃO”
Há cinquenta anos falecia o Cego
Aderaldo, o mais lírico violeiro e cantador do
Brasil
Texto de J. Lindemberg de Aquino
Cem anos já são
passados do nascimento do mais famoso dos poetas cantadores e violeiros do
Nordeste (o centenário do Cego aconteceu em 1978 – este artigo é de 1977), o
Cego Aderaldo. Cearense do Crato, teve por berço o cenário emoldurado de verdes
e azuis da Serra do Araripe o cascatear de fontes e regatos cristalinos e a
terra histórica, de mártires e de heróis.
Poeta e repentista, o
verso saia-lhe natural, rude, rústico e espontâneo, seja a entoar louvores ou a
ferrotear os adversários dos incansáveis desafios sertanejos, seja em epigramas
vorazes contra os que lhe testavam a argúcia e a inteligência, seja na
exaltação das belezas da terra, dos sentimentos diversos ou nos repentes
gozados, humorísticos, galhofeiros e ferinos que faziam a delícia dos auditórios.
Na poesia de Aderaldo
cintilam faiscações primorosas de uma inteligência inconfundível. Tinham os
seus versos configurações geniais, mostrando a lucidez de um espírito
observador e analítico, como esses:
O filho do alfaiate —
seu brinquedo é com retalho,
O filho do jogador
gosta muito é do baralho,
E o filho do
preguiçoso só dorme bem no borralho,
O filho do homem
praiano, seu vício é comer areia,
O filho da costureira
sua roupa é muito feia,
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa
alheia
O filho do carteiro —
brinca com caixão e saca,
O filho do feiticeiro
só fala em urucubaca,
O filho do vaqueiro
junta ossinhos, chama vaca…
O filho do ferreiro,
seu brinquedo é uma safra,
O filho do pescador
aprende a fazer tarrafa,
E o filho do
cachaceiro nasce lambendo garrafa…
Falando sobre a terra
natal de Aderaldo, o grande Jáder de Carvalho diz:
“Cego Aderaldo… de
onde era filho? Ele mesmo, nas suas memórias aponta o Crato como o chão onde a
parteira lhe apanhou o corpinho nutrido. Mas a terra mesmo da gente não é
aquela onde nasce o corpo: é aquela onde nasce a alma. E a alma do cantador
famoso veio à luz em Quixadá. Foi na cidade das pedras na cidade do chão duro e
salgado, que veio ao mundo a alma do mais agressivo o mais lírico violeiro e
cantador do Brasil.
A alma da gente, ó meu
leitor — continua Jáder de Carvalho – não brota logo com o corpo, entre as
dores do parto: brota na hora em que o menino principia a entender, a sentir o
mundo, o céu, o canto dos pássaros, o mugido de uma vaca o relincho de um
cavalo, o aboio de um vaqueiro — em qualquer dessas coisas pode estar a raiz da
alma. Como pode estar também, no gemido de uma viola, num apito de fábrica, no
silvo de um navio no dobrar de um sino, no barulho do mar.
A alma de Aderaldo
nasceu — e disso tenho certeza, sob o sol de fogo de Quixadá, ao pé de uma mãe
viúva, que, de tão pobre, teve de empregar a dois vinténs por dia o órfãozinho
de cinco anos…”
Eduardo Campos, ao
analisar o Cego Aderaldo afirma:
“Não se repetia, aí
estava a grande vantagem sobre os outros.
Não era cantador das
palavras difíceis, dos que se acodem nos dicionários ou nos livros sagrados. Os
seus grandes livros de sabedoria estavam na natureza, no estranho mas belo
mundo que ele, a rigor, aprendeu a ver através dos outros”.
O Aderaldo sempre
cantou sua cegueira em diferentes ocasiões.
Eis algo a esse
respeito, de sua autoria:
Correu de mim a
fortuna a luz dos olhos perdi;
Céus, estrelas, terra
e mar
Fugiram, jamais os vi,
Flores jardins, campos
e prados de vê-los jamais esqueci.
Deus quer que eu viva
sem lua. Sem ver do mundo a beleza.
E permitiu que eu
perdesse da vida a maior riqueza,
Já não tenha a quem
recorra, nem a própria natureza!
Ou esse outro verso,
final do seu soneto, dedicado à sua mãezinha, composto em Maceió em 12 de maio
de 1949, Dia das Mães.
Este Dia das Mães,
como outros dias,
Santos e puros cheios
de afeição,
Abriga o bem de todas
as Marias
Cantando rimas para um
coração…
Mas minha mãe partiu…
Meus dezoito anos
Trouxeram-me a
cegueira, foi-se a alma
Desde então eu a vejo
entre meus planos
Mas somente com os
olhos de minha alma!…
Grande poeta e
cantador Aderaldo viveu mais de 70 anos a percorrer os sertões, em desafios e
violas, a entoar versos e a recitar poemas imortais.
Aderaldo no Céu é o
título de trabalho de Pantaleão Damasceno, jornalista cearense em homenagem ao
poeta após a morte. Nele Damasceno afirma:
“Cego Aderaldo, por
uma dessas coincidências da vida, nasceu no dia de São João e morreu no dia
consagrado a São Pedro. Tratando-se do mês das tradicionais comemorações
juninas, tudo indica que o saudoso violeiro, vai encontrar o Céu em festa e de
portas abertas, podendo o Santo Chaveiro, eufórico, repetir as mesmas palavras
que proferiu à chegada de Irene à porta do paraíso segundo o poeta Manuel
Bandeira:
— Entre, Aderaldo,
você não precisa pedir licença.
E o velho cego, agora
leve como uma pluma, e agora enxergando tudo, observa com surpresa, aqui e ali,
as belezas infinitas do firmamento. E numa espécie de desabafo, manda-nos
dizer, em mensagem de fé e esperança, que ‘os mortos vivem não os choreis’”.
Depoimento de outro
escritor, Otacílio Colares:
“O Cego Aderaldo era,
a nosso ver, o último remanescente daquela grei imensa que nos deu valores como
Inácio da Catingueira, Francisco Romano, Dantas Quezado e a negra Chica
Barroso. Forte como um carvalho, franco e simples como um eterno menino grande,
passou ele a existência a transmitir alegria, em versos que lhe saíam da alma
como o arrojo dos rios em cheia, e soube morrer tranquilo e sereno como um
justo, compenetrado de haver realizado a sua destinação, na terra que ele tanto
amou e decantou. Tipo acabado de trovador da velha cepa, com a sua morte,
podemos estar certos, encerrou-se um ciclo dos grandes cantadores aqueles que
tinham como característica primordial a singeleza no viver e no interpretar a
sua arte”.
Extraordinário rapsodo
dos sertões, Aderaldo eternizou-se pelo muito que produziu, e que está, infelizmente
disperso em livros, jornais e revistas. Em 1962, foi lançado um livro com seus
versos, com comentários de Raquel de Queiroz e Paulo Sarasate. Mas esse livro
hoje raro, não contém um milésimo de sua fertilíssima produção poética,
derramada em mais de 60 anos pelo Brasil inteiro. Sua vida cantou a dor, de ver
a pobreza rondando-lhe a infância desventurada, o pai, surdo e paralítico, a
mãe pobre e desassistida e a cegueira chegar-lhe aos 18 anos de idade. Mas a
tudo resistiu, valendo-se da voz, inspiração, inteligência e lucidez, para com
a viola, exaltar o sertão e construir o seu mundo.
Humorista fez da
ironia a suprema virtude nos versos, e sentia-se que, com tato e olfato aguçado
via melhor do que os que tem olhos. Ao ser apresentado à noiva de um cidadão,
sentindo-a robusta e forte; versou:
Doutor, esta sua noiva
É uma linda cachopa,
a gente olhando seus
seios
Assim por cima da
roupa,
é ver dois cocos na
praia
Dentro dum saco de
estopa.
Se eu me casasse
doutor
Minha mulher era feia,
Casar com mulher
bonita
toma a freguesia
alheia
Cego com mulher bonita
É plantar feijão de
meia…
Trovador inesquecível
dos sertões, Aderaldo Ferreira de Araújo, era este o seu nome, nasceu em Crato
a 24 de junho de 1878 e faleceu em Fortaleza, praticamente indigente*, a 29 de
junho de 1967, sendo filho do casal Joaquim Rufino de Araújo, alfaiate, e Maria
Olimpia de Araújo. A sua rua de nascimento foi a antiga Pedra Lavrada, das mais
antigas do Crato, que tem o Riacho Granjeiro às costas e é hoje chamada Pedro
II. Encantou os auditórios mais seletos de todo o Brasil e percorreu todos os sertões, vilas,
sítios e fazendas, cantando, encantando com sua verve, seu humor e sua imensa
produção poética. O que produziu garantiu-lhe a imortalidade e dele disse, em
versos, na sua despedida, Ladislau Vieira:
Já não vibra a viola
do
Nordeste nas praças e
nas casas das fazendas
e que nas lojas
redobrava as vendas
tangida pelas mãos do
antigo mestre.
A araponga de cantar
silvestre
Na sua voz de metal
pelas contendas tornou-se muda,
De mudez agreste
Na sua voz de metal
pelas contendas.
Não mais se animam
velho e criaturas
Nas noites de sermões
enluaradas
Nos fogos de São João
pelas calçadas…
Pois finou-se o
Aderaldo, ao fim das danças
Ninguém jamais na
terra o encontrará
e a “Parca a paca cara
pagará…
Aquino, J. Lindemberg
de. “Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro e cantador do Brasil”. Jornal do
Commercio. Recife, 25 de junho de 1977
Fonte:
http://www.jangadabrasil.org/revista/2011/10/27/cego-aderaldo-o-mais-lirico-violeiro-e-cantador-do-brasil/
* A respeito dessa
afirmativa, de que o cego teria morrido como indigente, vejamos o que diz o
mestre Alberto Porfírio em seu livro ‘Poetas populares e cantadores do Ceará’:
“Em Fortaleza, quando
adoeceu para morrer, foi colocado no apartamento Eduardo Salgado da Santa Casa
de Misericórdia, quarto 6, onde, por conta do industrial Fernando Pinto, foi
assistido pelos médicos especialistas Dr. Farah Otoch e Dr. Eudásio Barroso,
muito ao contrário do que se fala por aí, dizendo que o velho poeta fora
internado e morrera como indigente.”
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