MINHA PRIMEIRA BIBLIOTECA
Arievaldo Viana
Como já disse
repetidas vezes, o primeiro tipo de literatura que tive acesso foram os
romances de cordel de minha avó, guardados numa maleta empoeirada* que jazia
abandonada em cima do caixão da farinha, no quarto grande da casa velha. Uma
vez, ao tentar descer desse caixão, acabei escorregando de mal jeito, com as
costas contra a parede e, como estava sem camisa, fiquei sem uma tira de couro
do espinhaço. Essa casa fora a antiga habitação de meus avós quando vieram do
Castro para o ‘Toco preto’, rebatizado oportunamente de Fazenda Ouro Preto,
nome que permanece até hoje. Era terreno inóspito, desabitado, quando o casal
resolveu desbravá-lo na companhia de uma numerosa prole de filhos ainda pequenos.
No terreiro havia um paiol de milho onde, por mais de uma vez, foi avistada uma
onça. Ao nascente fica a Serra do Peitão e o serrote dos Três Irmãos, três
gigantescos monólitos de feição similar. Ao sopé do primeiro bloco de pedra
fica a belíssima fonte das Coronhas, um reservatório de água potável, para onde
fui algumas vezes na companhia do meu pai, sempre cantarolando em voz alta
antigas canções de viola ou romances de cordel. Descrevo esse cenário em
versos, no meu ‘Marco cibernético do
Reino dos Três Irmãos’, cordel lançado pela Tupynanquim Editora.
Além desses
folhetos e romances, havia também alguns livros que não me era permitido
folhear. Dentre os quais, dois volumes do romance O mártir do Gólgota, do escritor espanhol Enrique Pérez Scrich, obra
muito popular no Nordeste desde meados do século XIX. A edição era encadernada
em capa dura com carneira de couro e fora impressa em Portugal, em 1883, em
português arcaico e ilustrada com belas gravuras de metal. Havia ‘A Bíblia das Escolas’, edição de 1912,
que pertencera ao meu bisavô Fitico, que apesar do texto em português fora
editada na Alemanha. Esse livro desapareceu misteriosamente da minha
biblioteca, levado talvez por algum parente ‘saudosista’. Tinha também alguns
livros escolares, que pertenceram às minhas tias e na casa dos meus pais os
livros escolares de minha mãe, que fora estudante do Ginásio Gustavo Barroso,
em Maracanaú, no início da década de 1960. Havia ainda a primeira edição de ‘O sanfoneiro do Riacho da Brígida’,
biografia de Luiz Gonzaga escrita por Sinval Sá e um livro curioso, escrito por
um frade, intitulado ‘Através das
campinas e matagais’ narrando as aventuras deste religioso em pleno sertão
de Matogrosso, na companhia de um índio valente chamado Ibituruna. E para meu
deleite maior, uma edição de ‘Sertão
Alegre’, de Leonardo Mota, que pertencia a meu tio Zé Viana, mas que estava
por lá há muito tempo, sem que o dono reclamasse a sua devolução. Estes livros
eu só pude ler realmente quando estava beirando os dez anos e já tinha
responsabilidade suficiente para não rasgá-los ou colorir suas gravuras com
lápis de cor.
Sempre vivi
agarrado com livros e folhetos. Depois do almoço, armava uma rede no alpendre e
me deliciava com a leitura. Meu avô gracejava me chamando de jacaré: - ‘Olha aqui, Alzirinha, o jacaré já está de
novo na lagoa’. É que os outros meninos da redondeza, meus primos
principalmente, não eram muito afeitos à leitura e passavam o dia aprontando
reinações numa velha capoeira que começava logo após o quintal dos fundos, onde
estava situada a cacimba do gado. Após o almoço livres da escola ou de pequenas
tarefas domesticas que desempenhavam desde a mais tenra idade – e isso incluía
transportar água em jumentos, cortar capim para dar aos animais, plantar,
colher algodão, milho e feijão – eles iam para a cacimba munidos de baladeiras
derribar enxuís e matar passarinhos. Raramente eu os acompanhava nessas
incursões, preferindo sempre as minhas leituras na redinha de balanço.
Não havia
aparelho de TV, nem geladeira, nem qualquer eletrodoméstico por uma questão
óbvia: não havia energia elétrica e por isso a gente dormia cedo e acordava
cedo, tendo como principais fontes de entretenimento o rádio, os folhetos de
cordel e as histórias contadas à luz de lampiões a gás. Meu avô sabia alguns
contos de bichos, da raposa sabida que foi lograda pelo canção, das andanças de
Jesus e São Pedro pelo mundo, das peripécias de Camões e Pedro Malazartes, da
mulher que enganou o diabo. Era um mundo de coisas que desfilava pela sua prosa
e simples e envolvente. Já minha avó tinha o hábito de ler em voz alta para os
netos, sobretudo folhetos de cordel. Mas havia também um livro de contos da
carochinha, de capa colorida e fartamente ilustrado onde havia Cinderela, Guilherme Tell, O rouxinol e a
rosa, O gato de botas e outras histórias envolventes que se tornavam mais
belas através de sua narrativa, porque ela sempre nos tirava alguma dúvida
sobre lugares, objetos e costumes que não conhecíamos. Foi esta a minha
primeira biblioteca e dela eu guardo as mais gratas recordações. Esses livros
ficavam nas gavetas dos móveis da sala de jantar e estavam sempre à mão. Os
livros religiosos ficavam na gaveta de um pequeno oratório, que havia no quarto
onde ela costurava. A edição mais luxuosa da Bíblia Sagrada era guardada a sete
chaves no seu guarda-roupa. Eu tinha franca predileção pelas histórias do
Antigo Testamento: A história de José e seus irmãos, o Êxodo do povo de Israel
e suas peregrinações pelo deserto do Sinai, as batalhas de Josué, Sansão e
Dalila, Davi e Golias, o livro dos Reis, Esther, Tobias até desaguar na saga
dos Macabeus. Li tudo isso antes de completar dez anos de idade, me detendo,
inclusive, nas notas de rodapé, numa fonte tão minúscula que hoje eu não seria
capaz de decifrar, a não ser com a ajuda de bons óculos ou lente de aumento.
Quando
completei dez anos passei a estudar na cidade e a ter contato com outros
livros, histórias em quadrinhos e até bolsilivros
de faroeste. Nada disso me marcou tanto como os livros e cordéis da velha
biblioteca de minha avó. Eu gostava mesmo era quando chegavam as férias de
julho ou do fim do ano para reler tudo aquilo que eu já sabia de cor. No
mercado de Maranguape, para onde eu me dirigia quase todos os sábados, eu
ampliava o meu estoque de folhetos. Havia ali, em 1979, um folheteiro que
sempre aparecia nos finais de semana com um grande sortimento de folhetos das
tipografias de Juazeiro do Norte e Campina Grande. O dinheiro era curto,
pequenas remessas que minha avó mandava de vez em quando dentro das cartas que
me escrevia e era destinado à merenda no colégio. Eu preferia poupar esses
tostões – numa verdadeira dieta de faquir – para comprar meus folhetos no final
de semana. Por esse tempo eu já escrevia meus primeiros versos nos cadernos
escolares. É uma pena não haver guardado quase nada dessa produção, pois eu
escrevia com muita freqüência. Fazia as capas dos folhetos em papel de
embrulho, que nesse tempo era colorido – rosa, verde, laranja... Eu tentava
imitar a fonte tipográfica, por isso desde cedo escrevo sempre em letra de
forma. Nunca gostei da minha caligrafia, que era miúda e irregular. Invejava a
letra de minha avó, sempre correta, exuberante, cheia de arabescos. Quando
ficou quase cega, ela não conseguia enxergar a pauta do papel e escrevia pelo
prumo, sem ter como corrigir as imperfeições. Lamentava demais não poder ler,
aí chegou a minha vez de retribuir a sua dedicação, lendo para ela os folhetos
que eu comprava. Tenho, com sobrada razão, muita saudade desses tempos bons da
minha infância.
* Quando me entendi por gente, a
maletinha de minha avó estava abandonada em cima de um antigo caixão de
farinha, no quarto grande da casa velha, para onde minhas tias deportavam tudo
aquilo que consideravam quadrado, cafona e obsoleto. Nas paredes só havia lugar
para pôsteres de Jerry Adriani, Roberto Carlos e Wanderley Cardoso. No rádio,
os programas que tocavam Luiz Gonzaga ou cantoria também eram desdenhados pela
'nova' geração influenciada pela Jovem Guarda. Eu adorava ouvir os programas
que minha avó sintonizava e tinha nas veias o germe da poesia. Fui responsável
pelo resgate dessa preciosidade - a tal maletinha de 'romances', embora tenha
ouvido alguns protestos do tipo: - Esse menino parece um velho, anda agarrado
com esses romances 'véi' empoeirados, que só servem para sujar a casa!
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