quarta-feira, 13 de julho de 2011

Do jornal da BESTA FUBANA

Continuação do texto publicado semana passada na coluna "Mala da Cobra", no site Jornal da Besta Fubana, uma gazeta da 'bixiga-lixa'

http://www.luizberto.com/

HUMOR NA CANTORIA – PARTE II


(Relaxo e Glosa)
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Luiz Dantas Quezado e o folclorista cearense Leonardo Mota
Abaixo, capa do livro Glosas Sertanejas


O cantador, via de regra, gosta de pabular-se, enaltecer seus próprios feitos, delimitar seus territórios poéticos com Marcos e Fortificações e gabar-se  de qualidades que chegam às raias do exagero. Pelejas como a de Cego Aderaldo com Zé Pretinho, Romano com Inácio da Catingueira, Pinto com Milanês e José Gustavo com Maria Roxinha são verdadeiras batalhas verbais, onde cada contendor arma laços e estratégias para derrotar seu oponente.
Mas como toda regra tem exceções, alguns de nossos menestréis levam a coisa na base da brincadeira e satirizam seus defeitos, suas fraquezas e a sua própria condição de poetas populares. Eis como se apresentava o velho glosador Luiz Dantas Quezado (paraibano de Antenor Navarro, onde nasceu aos 5 de julho de 1850. Viveu a maior parte de sua vida no Ceará, onde faleceu):


“Eu me chamo Luiz Dantas
Meu natural eu não nego,
Nasci na ‘Tábua Lascada’
Me criei na ‘Caixa-Prego’
Apanhei d’um aleijado,
Corri com medo d’um cego!”


Seu livreto Glosas Sertanejas, peça rara de colecionadores, acaba de ganhar uma reedição especial, fac-similar de uma edição lançada em 1925. A feliz iniciativa foi de seu sobrinho Paulo Quezado, advogado e atual presidente da OAB-CE.
Como Luiz Dantas, centenas de poetas populares cultivam o bom humor e a irreverência em suas produções. Dentre os mais irreverentes destacamos Zé Limeira  O poeta do absurdo, cantador imortalizado pelo escritor Orlando Tejo, João Mandioca, Louro Branco, Calixtão de Teresina (Franciné Calixto), José Mota Pinheiro, Zé Amâncio e Pintasilva, poeta canindeense falecido na década de oitenta do século passado.

Zé Limeira, criador da escola do absurdo na cantoria, teve a sua obra pesquisada e registrada por Orlando Tejo, sem censura ou meias tintas. Os demais, permanecem no anonimato, excluídos de quase todas as antologias de cantadores. Alguns autores de livros desse gênero conhecem de cor os versos proibidos desses poetas e os recitam em rodas de amigos, mas não ousam publicá-los. De certo modo, esse cuidado é compreensível. O público tradicional da cantoria é conservador e não gosta de livros que consideram atentatórios a moral e aos bons costumes.
Parte dessa produção maldita foi reunida para ilustrar esse capítulo do livro “Mala da cobra – Almanaque Matuto”. São versos irreverentes e desabusados, glosados a partir de temas sugeridos para satirizar determinada situação ou criados no calor do desafio, com o intuito de ridicularizar o parceiro. Existem ainda aqueles que são fruto da ingenuidade do poeta e acabam virando anedota na boca dos cantadores e apologistas, como esta que aconteceu com o repentista Chico Ivo:

UM JANTAR ESPECIAL: FAVA COM CAPIM

É o poeta Moacir Laurentino (Moacir Cosme de Lima, paraibano da cidade de Paulista)  que dá publicidade ao fato que irei narrar, mas quem repassou-me de fato foi o cantador Zé Maria de Fortaleza, um grande nome da cantoria em nosso Estado. Um poeta de nome Chico Ivo (cearense de Jaguaretama), guloso que só o esmeril da França, sempre que marcava uma cantoria fazia algumas exigências ao dono da casa. Não era propriamente um Roberto Carlos, que exige um camarim azul, com 40 toalhas brancas e 100 litros daquela água mineral francesa tão famosa em todo o mundo. Nada disso. Tudo o que Chico Ivo exige, além de algumas cédulas na bandeja, é um jantar digno de seu apetite.
Foi assim na casa de um velho sertanejo apreciador de cantoria. O anfitrião providenciou um jantar de fava com toucinho, com um tempero à base de nata, além, é claro, da velha e boa farinha de mandioca servindo de base e empachando na retaguarda. De quebra, alguns tacos de rapadura Serra-Grande para rebater o manjar sertanejo. Chico Ivo, que não é homem “luxento”, esbaldou-se. Comeu a valer. Em dado momento, observou que no pé da parede estava um montículo de capim verde e bem fresco, cortado bem miudinho, que serviria de ração para um borrego enjeitado. Não teve dúvidas, virou-se para a dona da casa e disse:
- Dona, aquilo é verdura? Eu adoro verdura…
- É não, seu Chico, é capim… é a comida do borrego, num sabe?
De nada adiantou a explicação da mulher. Chico Ivo foi lá, pegou uma mancheia de “verdura”, jogou por cima do prato de fava, misturou bem e comeu à vontade. Momentos depois, já iniciada a cantoria, Chico Ivo fez esta saudação louvando o manjar que lhe fora oferecido:


“Quero agradecer a janta
Da casa do seu Joaquim,
Eram seis litros de fava
Cinco quilos de toicim
Quatro rapaduras grandes
E um feixe de capim…”


Zé Maria, cantava certa feita com o Chico Ivo, quando o mesmo terminou sua estrofe dizendo o seguinte:


“…Pois além de ser valente
Ainda sou seu professor.”


Zé Maria deu o troco comparando o colega a um animal nocivo…


“Quando ver um cantador
Vê um animal nocivo,
Perna fina, bunda murcha
Bucho grande e olho vivo,
Pode apertar o gatilho
Que acerta no Chico Ivo.”
* * *
PINTASILVA (OU PINTASILGO)Um passarinho irreverente

Antônio Anastácio Leitão, vulgo PINTASILVA, foi um o trovador popular que residiu por muitos anos na Fazenda São Pedro, em Canindé. Era natural de Fazenda Trapiá, no mesmo município. As glosas do velho menestrel, foram recolhidos por Francisco Walter Uchoa Cruz, contra-baixista e vocalista da banda “Outros Toques”, um admirador incondicional da cantoria e da cultura popular. Bá, como é chamado o Chico Walter, recebeu das mãos do velho poeta um caderno contendo as suas glosas, pouco antes do mesmo falecer, e retém na memória grande parte desses escritos.
Informa-nos o referido apologista que o senhor Otávio Silva, amigo de Pintasilva, foi a um casamento na localidade de Porrote, situada depois do Felão, na zona rural de Canindé e passou muita fome. O Porrote é um lugarejo distante e de difícil acesso. Como diria meu primo Flaubert, “não fica propriamente no inferno, mas dá pra escutar o cão conversando bem pertinho”. Otávio passou fome de cachorro amarrado, porque os noivos foram casar na matriz do Canindé e estavam demorando a voltar. Depois das sete da noite, cansado de tanto esperar, o convidado resolveu voltar pra casa do jeito que foi, ou seja, com fome. No caminho, encontrou com o amigo Pintasilva e relatou seu infortúnio. Pinta transformou o drama do amigo em versos, dos quais pinçamos  estas duas estrofes:


“Para um casório de nome
Um dia fui convidado
Para assistir a um noivado
Quase que morro de fome…
Na casa que não se come
Caneco não vai ao pote
Uma surra de chicote
Não paga o mal que eu passei
E nunca mais que eu irei
Casamento no Porrote.



Quando um dia um urubu
Enjeitar carniça quente,
A galinha criar dente,
Criar cabelo em muçu,
Gato enjeitar gabiru,
E cobra enjeitar caçote,
Se acabar pedra em serrote,
Leão deixar de ser rei,
Só nesse dia eu irei
Casamento no Porrote.”



Detalhe: um dos temas prediletos de Pintasilva era satirizar a vida sexual dos animais. Eis alguns exemplos:

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O GALO E A GALINHA:












“O galo mais a galinha
queriam fazer fofoca,
a galinha estava choca
num canto lá da cozinha
isso bem de manhãzinha
começaram o sururu
da crista pro mucumbu
o frango foi à cavalo
e a galinha disse: - Galo,
tenha pena do meu cu“


Pintasilva tem outras estrofes bem mais cabeludas do que esta, mas estas eu deixo os leitores de “A Mala da Cobra” descobrirem quando o livro for lançado, o que pretendo fazer ainda este ano.
* * *
(Trechos do livro “A MALA DA COBRA – Almanaque Matuto”, de Arievaldo Viana)

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