João Melchíades na capa da primeira edição de
Cantadores e Poetas Populares, de F. Chagas Baptista (1929)
João Melchíades, o
Cantor da Borborema
Por Bráulio Tavares
(Do blog Mundo
Fantasmo)
O dia de 7 de setembro
é aniversário de muita gente importante, como meus amigos-do-coração Roberto
Coura e Jackson Agra, e de instituições fundamentais para o equilíbrio do
Universo, como o Treze Futebol Clube, o glorioso Galo da Borborema.
Mas resolvi dedicar
este artigo a um aniversariante não menos ilustre, embora pouco conhecido, que
hoje completa o seu sesquicentenário de nascimento.
Nasceu em 7 de
setembro de 1869, no município de Bananeiras (PB) o poeta que veio a ser
chamado “O Cantor da Borborema”, João Melchíades Ferreira da Silva.
Acabei de passar os
olhos no primeiro esboço da biografia do poeta que está sendo escrita pelo
pesquisador Arievaldo Viana, de Fortaleza, o mesmo que biografou o “pai do
cordel” Leandro Gomes de Barros, além do precursor “Santaninha”, cuja vida ele
reconstituiu juntamente com Stélio Torquato.
Aqui, as respectivas referências:
Leandro:
Santaninha:
No seu trabalho bem
documentado sobre João Melchíades, sob o título provisório de A Saga Aventurosa
do Cantor da Borborema, Arievaldo destaca, entre outros, três elementos
importantes para fazer dele um personagem único:
1) Lutou ainda muito jovem na Guerra
de Canudos.
2) Escreveu o Romance do Pavão
Misterioso.
3) Foi personagem de Ariano Suassuna
no ciclo da Pedra do Reino.
Melchíades teve uma
vida aventurosa: raptado por ciganos antes dos dez anos de idade, só foi
resgatado pela família três anos depois. Aos dezoito anos, ainda na época da
monarquia, entrou para o Exército, e em 1897, como integrante do 27º Batalhão
de Infantaria das Forças Armadas, foi combater na Guerra de Canudos, onde quase
perdeu a vida. Depois da guerra, foi promovido a Sargento-Mor.
Existem relatos entre
seus descendentes de que ele teria voltado da guerra muito traumatizado pelos
episódios de violência e crueldade que testemunhou, entre eles a visão dos
cadáveres carbonizados de mães agarradas aos filhos. Em todo caso, participou
da tomada das trincheiras dos jagunços ao longo das margens do rio Cocorobó,
uma das batalhas mais sangrentas daquela guerra.
Melchíades casou-se em
1897 com Senhorinha Melchíades, com quem teve quatro filhos. Nessa época
começou também a sua produção poética. Segundo Arievaldo Viana, a pesquisadora
Ruth Brito Lemos Terra localizou um poema datado desse período.
Alguns dos folhetos
mais conhecidos do poeta, que morreu em 1933, são A Guerra de Canudos, O
Príncipe Roldão no Leão de Ouro, Estória do Valente Sertanejo Zé Garcia,
Combate de José Colatino contra o Carranca do Piauí, História de Juvenal e
Leopoldina, A Vitória dos Aliados: a Derrota da Alemanha e a Influenza
Espanhola e outros.
Com relação ao célebre
Romance do Pavão Misterioso, existe há muitas décadas dentro da historiografia
do cordel uma polêmica acesa sobre quem seria o verdadeiro autor do folheto: José
Camelo de Melo Rezende ou João Melchíades Ferreira da Silva.
Arievaldo Vianna colhe
depoimentos de descendentes dos poetas e de outras fontes, e tenta pôr um pouco
de ordem nesta discussão que repousa em grande parte nas opiniões de pessoas
que dispõem apenas de relatos orais. Há pouca documentação impressa disponível.
Segundo Arievaldo,
...entre 1925 e 1929 circula a primeira edição impressa de O Pavão
Misterioso, a qual vinha assinada por João Melchíades Ferreira da Silva. Alguns
pesquisadores asseguram que já havia uma versão do poema, escrita anteriormente
pelo paraibano José Camelo de Melo Resende. Esta versão supostamente
“original”, no entanto, teria vindo a lume apenas sob a forma de cantoria, numa
apresentação de Camelo Resende, não tendo sido publicada. Teria ocorrido então
que João Melchíades, parceiro de Camelo Resende em algumas cantorias,
memorizara a essência da narrativa, reescrevendo-a a seu modo.
Há indícios de que
Camelo teria de fato criado a versão inicial do romance, mas Melchíades
imprimiu primeiro a sua, de modo que cada um, possivelmente, achava-se com
algum direito para reivindicar a primazia.
José Camelo não
protestou de início porque foi esta uma fase turbulenta de sua vida; preso por
ter recebido e passado adiante (inadvertidamente) algum dinheiro falso, ele
levou anos para reequilibrar sua vida. E nesse processo revoltou-se contra a
publicação do folheto de Melchíades, afirmando, ao publicar sua própria versão:
Quem quiser ficar ciente
da história do Pavão
leia agora este romance
com calma e muita atenção
e verá que essa história
é minha, e de outro não!
Há muitos anos versei
esta história, e muitos dias,
fiz uso d’ela sozinho
em diversas cantorias
depois dei a cópia dela
ao cantor Romano Elias.
O cantor Romano Elias
mostrou-a a um camarada,
a João Melchíades Ferreira
e este fez-me a cilada
de publicá-la, porém,
está toda adulterada.
De fato existem
diferenças textuais entre as versões dos dois autores, bem como semelhanças,
que o livro de Arievaldo estuda de maneira mais minuciosa.
João Melchíades tem a
honra de ser um dos poucos personagens “da vida real” que figuram no Romance da
Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna (ele e o poeta-charadista Euclides
Vilar). No livro, ele é o mestre poético do protagonista Dom Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna, e aparece em momentos-chave da narrativa.
O maior destaque dado
a Melchíades, contudo, é numa das sequências do romance, As Infâncias de
Quaderna, publicado em folhetins no Diário de Pernambuco entre 1976 e 1977, e
ainda inédito em livro.
É nesta última obra
que João Melchíades é visto por Quaderna pela primeira vez, no Folheto XLIII,
”A Casa do Matagal e a Chave Enferrujada”.
Quaderna tinha sido
raptado por ciganos (tal como ocorreu com Melchíades na vida real) e é
resgatado pelo cangaceiro Antonio Silvino, que o traz de volta para a casa de
sua família. O garoto está passeando pela fazenda com seu primo Arésio
Garcia-Barreto e os dois se encontram com o poeta, que reconhece Quaderna, de
quem é primo distante. E passa a transmitir a este, pela primeira vez, a
história da família de ambos!
João Melchíades começou a infeccionar meu sangue com aquela turva
história de assassinatos sobre aras e pedras, tesouros, encantações, combates,
coroas, elevação e trucidamento de Reis, violações de Princesas, incêndios,
degola dos inocentes e outras coisas gloriosas e monárquicas.
Diante do menino
maravilhado com tantas façanhas nobres, Melchíades continua:
– Os turcos inventaram que tinham matado O Rei Dom Sebastião, na África,
mas é mentira. Ele veio para cá, numa Nau, entre nevoeiros, e depois um filho
dele veio morar no Pilar, e o neto em Boqueirão de Cabaceiras, junto com o
Teodósio, o Imperador Teodósio – Teodósio de Oliveira Ledo de nome. (...)
Veio a Guerra dos Quebra-Quilos em 1874: foi aí que, na estrada de
Campina Grande aqui para Taperoá, degolaram seu Avô, meu tio, Pedro Alexandre.
A mulher dele, Bruna, tia minha e Avó sua, pegou a cabeça cortada dele e veio
para cá, pedir morada e proteção a seu outro Avô, o Barão do Cariri. (...)
Bruna, que era filha do Padre Wanderley, mandou botar na salmoura a cabeça do
marido dela, Pedro Alexandre, para ela não apodrecer.
É esse o mestre que
injeta na imaginação fogosa de Quaderna uma boa parte dos delírios que
futuramente irão desencadear os prodígios, os crimes bárbaros e as convulsões
sociais do Romance da Pedra do Reino. Seu uso como personagem de ficção por
Ariano mostra a importância deste poeta de verdade cujo sesquicentenário de
nascimento celebramos hoje, 7 de setembro de 2019, quando o Brasil mostra que
não mudou nada, nadinha.
O poeta, escritor, compositor e dramaturgo paraibano Bráulio Tavares
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