quarta-feira, 7 de junho de 2017

NA CACIMBA DOS SABERES


MISSA DO VAQUEIRO EM CARIDADE, PREPARAÇÃO DE PAMONHA E MELADINHA DO VELHO JEITO SERTANEJO E ESCALADA AO TOPO DO SERROTE DOS TRÊS IRMÃOS


Texto: Arievaldo Vianna
Fotos: Autemar

Considero-me um escritor sintonizado com a nova realidade do mercado editorial, com as modernas técnicas de impressão e divulgação virtual dos textos (e-book, internet), com os eventos literários que acontecem Brasil afora, mas não quero esquecer o caminho da cacimba dos saberes, da fonte inesgotável, do manancial sagrado que sempre alimentou a minha imaginação, que em algum de meus folhetos aparece com o nome de “Fonte das Coronhas”, um lugar real, situado no sopé do serrote dos Três Irmãos, na divisa dos municípios de Canindé, Quixeramobim e Quixadá. Foi ali que eu nasci e era ali, naquela fonte, que meu pai colhia água potável e a conduzia no lombo de dois jumentos, cantando folhetos de cordel em voz alta, para encurtar o nosso caminho.

No último final de semana resolvi saciar minha sede nas velhas cacimbas de saberes sertanejos. Primeiro fui à tradicional Missa do Vaqueiro, no município de Caridade-CE, na abertura dos festejos de Santo Antônio, padroeiro do município. Para ali me desloquei na companhia dos poetas Geraldo Amâncio e Zé Vicente, que abrilhantaram a celebração do Padre Tula, cantando um mote inspirado no Evangelho: "Simão Pedro, tu me amas? / Apascenta o meu rebanho", pelo que foram largamente aplaudidos.



Tradicional Missa do Vaqueiro, em Caridade-CE

No sábado desloquei-me para a comunidade de Sabonete-Macaóca, município de Madalena, onde me empenhei na mistura de uma gostosa "meladinha", bebida feita a base de cachaça, limão e mel de abelha, muito popular na região. Em outros lugares leva o nome de "cachimbo". A mistura tem que ser feita na medida exata. Meio copo de cachaça, duas colheres de mel e uma banda de limão. Depois de mexer e deixar descansar por alguns minutos, torna-se um néctar tão apreciado quanto a "ambrosia" dos deuses do Olimpo. Não pode é se exceder, porque além de gostosa, a bebida pega ligeiro e bota o cabra para dormir mais cedo. Nesse ínterim, recebi a visita do primo Francisco Vianna, o popular Chico Pipa, que me trouxe algumas espigas de milho verde, nata e um saco de frutos de cajá. Com a sua habilidade de sertanejo curioso, foi quem nos ensinou a fazer a casaca das pamonhas usando as palhas do próprio milho, do jeitinho que minha avó e minha mãe faziam. Ele sabe dois modelos então aproveitamos a diferença para produzir pamonhas doces e salgadas, temperadas com nata, queijo de coalho e algumas pitadas de sal ou açúcar, conforme o gosto de cada um.



Esticamos a prosa e a baladeira tarde afora, ouvindo algumas cantigas juninas de Luiz Gonzaga e quando me dei conta já havia passado da bitola, bebendo além da conta. Nem me lembrava do compromisso assumido com o mano Autemar e os primos Erasmo e Renê Sousa, para escalar a serra dos Três Irmãos, um sonho remoto acalentado desde a infância. Prejudicado pela ressaca, tive de suar um bocado na subida da montanha, mas com paciência e perseverança chegamos ao topo, de onde vislumbramos uma das mais belas paisagens que o sertão cearense pode oferecer.





EXPEDIÇÃO OURO PRETO | TRÊS IRMÃOS

Três monólitos de pedra
De assombrosa semelhança
Ocultaram os três castelos
Dos quais só resta a lembrança
No verso dos trovadores
Do reino da Esperança.

(O Marco Cibernético do Reino dos Três Monólitos)

Desde criança eu tinha o desejo de acompanhar um grupo de pessoas que escalava a serra dos Três Irmãos, situada ao nascente da fazenda Ouro Preto, porém nunca obtive autorização dos meus familiares. Nessa época, meu pai ia sempre ao sopé do primeiro serrote, buscar água no açude dos Calixtos ou na Fonte das Coronhas, um olho d'água perene, de rara beleza, que também fica nas imediações.

O vento soprava uma bela sinfonia nas palhas das carnaubeiras, mangueiras frondosas davam uma boa sombra e coqueiros espigados balançavam sua copa ao sabor do vento, nas imediações do açude onde íamos sempre em busca do precioso líquido. Eu aproveitava essas ocasiões para tomar banho, embora não soubesse nadar. Desde menino eu sempre fui astucioso como o Cancão de Fogo e afoito como Oliveiros, um dos Doze Pares de França, heróis de folhetos que meu pai cantava em voz alta pelas estradas sertanejas. Algumas vezes eu conseguia burlar o olhar sempre atento e vigilante de meu pai. Mas de pouco adiantava... Ele nos proibia o banho no açude, caso não estivesse presente. Subir a velha trilha, nem pensar. Nos períodos de estiagem dava para observar bem os vestígios de uma velha vereda. Mas papai não desgrudava o olho e até ameaçava de nos dar umas chineladas - em mim e no mano Itamar, meu companheiro predileto de travessuras, caso teimássemos em desobedecê-lo.


Somente agora, prestes a completar 50 anos de idade, é que pude realizar esse velho desejo da infância. Acabo de chegar de uma expedição aos confins do sertão onde fui nascido e criado. Esse pedaço de chão fica na divisa dos municípios de Madalena, Canindé e Choró Limão. Antigamente, Madalena pertencia a Quixeramobim e Choró desmembrou-se do território de Quixadá.  Escalamos o primeiro serrote do conglomerado chamado Três Irmãos, cuja altitude ultrapassa 550 metros. É uma tradição antiga fazer essa trilha e, dentre outras coisas, celebrar um terço no dia de Pentecoste. A data foi escolhida pelo saudoso primo José Rodrigues de Sousa, o Zé Miguel.

Na verdade, a tradição vem desde a década de 1950, quando a família Calixto Cavalcante e alguns vizinhos resolveram erguer um cruzeiro no topo da primeira montanha, a que fica do lado do poente. Um dos responsáveis por essa empreitada foi Raimundo Calixto, que depois se tornaria frade franciscano. Após ingressar na Ordem, adotou o nome de Frei Paulo e foi viver no Pará, como missionário de uma tribo indígena. Diz a tradição local que ele próprio se encarregou de transportar os tijolos até o local onde foi erguido o cruzeiro, que é de difícil acesso, com lances bem íngremes, difíceis de escalar com as mãos ocupadas.


Casa do Ouro Preto, construída por meus avós paternos
Manoel Barbosa Lima e Alzira Sousa.


Às vezes eu não entendo como é que a pessoa nascida e criada num paraíso como esse resolve se mudar para a cidade grande, com o intuito de arranjar emprego e educar os filhos. Nessa terra em que doutores se formam com o intuito de dominar e explorar o semelhante e políticos se ocupam em sabotar e subtrair as riquezas da nação, eu preferia viver nessas locas de pedras, tal e qual um preá ou um mocó, sem rádio e sem notícias de terras civilizadas. O problema é que nessa mesmíssima década de 1950, quando foi erguido o tal cruzeiro, o governo brasileiro permitiu um teste nuclear nessa cordilheira, segundo afirma o Padre Richard Cornwall, em seu livro AMARGOR, ao qual nos reportamos em SERTÃO EM DESENCANTO - I VOLUME DE MEMÓRIAS. Ou seja, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come!

O sacerdote encarregado de benzer o cruzeiro foi o então vigário de Choró-Limão, Padre José Bezerra do Vale, natural de Boa Viagem, que assumira essa paróquia em 1952, segundo informa o historiador Eliel Rafael da Silva Junior, do blog História de Boa Viagem.* Segundo testemunhas, o Padre Zé Bezerra escalou o serrote montado num jumento. Uma pessoa que também subira levando uma quartinha d'água para o sacerdote saciar a sede e aspergir água sobre o cruzeiro acabou quebrando acidentalmente a dita moringa, sendo obrigado a descer em busca de outra vasilha com água.

Tempos depois, uma pessoa da família Calixto (Irmã Tereza) que fora para o Rio Grande do Norte com o intuito de ordenar-se freira, converteu-se ao protestantismo e retornou aos Três Irmãos com o firme propósito de destruir o cruzeiro, o que fez, segundo dizem, com a ajuda de um irmão. Para tanto utilizaram foice, machado e até querosene, para transformá-lo em cinzas. Estivemos ontem no local e ainda encontramos tijolos espalhados e pedaços do velho cruzeiro destruído.

Alguns membros da caravana que escalou a velha trilha no dia de ontem (04 de junho de 2017) mostraram-se interessados na restauração do cruzeiro, o que talvez ocorra no ano que vem.

* Sobre o Padre José Bezerra, ver: http://www.historiadeboaviagem.com.br/pe-jose-bezerra-do-vale-filho/


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