ENTREVISTA – Diário
de Pernambuco / 30-04-2008
Caderno Especial ‘Nobreza do Cordel’ (8 páginas)
Arievaldo
Viana é um ardoroso
militante da causa do cordel. Nascido em 1967 numa fazenda nas proximidades de
Quixeramobim (CE), ele exercita a arte da poesia popular desde a infância.
Hoje, com cerca de 50 folhetos e três livros publicados, ocupa a cadeira de número 40 da Academia Brasileira
de Literatura de Cordel. Seu currículo, traz, ainda, prêmios na categoria e um
projeto, Acorda Cordel na Sala de Aula, utilizado para alfabetizar jovens e
adultos. Há mais de 10 anos, ele reúne material sobre a vida e a obra de
Leandro Gomes de Barros. O esforço gerou uma biografia do poeta paraibano que
será lançada ainda este semestre pela Editora Global*. A seguir, entrevista
realizada por e-mail:
ENTREVISTA
(ARIEVALDO VIANA)
“Leandro foi gênio
em todos os estilos”
1) O que faz de Leandro um artista
autêntico, original, no vasto universo do cordel?
ARIEVALDO – O
pioneirismo de Leandro Gomes de Barros e os mecanismos que ele desenvolveu para
que houvesse a transição da poesia popular oral para o folheto impresso é uma
coisa de gênio. A arte do trovadorismo veio da Península Ibérica e floresceu
tanto na América Espanhola quanto na América Portuguesa. Houve um tipo de
literatura popular em verso no México, Chile, Nicarágua e Argentina, muito parecido
com o folheto nordestino... Até a gravura popular usada para ilustrar os corridos é muito parecida com a nossa,
sem falar que muitos dos temas aproveitados pelos autores da Literatura de
Cordel nordestina também floresceram nesses países. De certo modo, a Literatura
de Cordel brasileira surgiu de maneira tardia, porque antes da vinda da Corte
Portuguesa em 1808, era proibida a existência de prelos aqui no Brasil. Então,
a poesia popular oral, que já existia desde os tempos de Agostinho Nunes da
Costa, Hugolino do Sabugi, Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D’água ganhou
um novo alento quando Leandro mudou-se da Vila do Teixeira, na Paraíba, para
Vitória de Santo Antão e passou a editar os primeiros folhetos nas tipografias
de Recife. Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, como a
gesta do boi (Boi Misterioso), o cangaço (já existiam cópias manuscritas dos
ABCs de Jesuíno Brilhante e Lucas da Feira) ou temas europeus como o Ciclo de
Carlos Magno e os Doze Pares de França, Imperatriz Porcina e Roberto do Diabo.
Ele foi mais longe. Criou um tipo de poesia cem por cento brasileiro,
destacou-se sobretudo pela sua sátira mordaz e instigante. O estilo de Leandro
é inconfundível. Ele teve fôlego para transitar em todos os gêneros e
modalidades correntes: Peleja, Romance, Gracejo, Crítica Social e o fez com
maestria. Poucos conseguiram igualar-se. No geral, ninguém o superou até hoje.
José Camelo de Melo, autor do Romance do
Pavão Misterioso, foi um gênio na modalidade Romance, assim como José Pacheco,
autor de A Chegada de Lampião no Inferno
foi um gênio em matéria de gracejo. Mas ninguém teve a grandeza de Leandro, que
foi gênio em todos os estilos.
2) Como se deu a formação intelectual e
poética de Leandro Gomes de Barros? O que podemos ver repercutido na sua obra?
ARIEVALDO – Leandro
descendia de uma família de pessoas inteligentes. Era parente do padre Vicente
Xavier de Farias, que foi vigário e mestre-escola na Vila do Teixeira. Acho
provável que ele tenha estudado com o padre entre os 9 e os 15 anos de idade,
período em que permaneceu na companhia deste religioso. Ele fez romances de
cavalaria baseados no livro de Carlos Magno e os 12 Pares de França com tal
fidelidade, que se pegarmos uma versão em prosa da história, ficamos encantados
com a maneira como ele aproximava a sua poesia do texto original. Foi um
pesquisador incansável dos contos tradicionais, onde buscava argamassa para
suas criações e, sobretudo, um bom conhecedor da Bíblia Sagrada. É provável que
tenha lido poetas eruditos como Castro Alves, Gonçalves Dias, Camões ou Álvares
de Azevedo, mas o que ele gostava mesmo era da poesia dos cantadores,
principalmente aqueles que cantavam “Ciência”, que bebiam em fontes como o
Lunário Perpétuo. Seu amigo e compadre Francisco das Chagas Batista era editor
e livreiro na capital da Paraíba. Seu genro Pedro Batista, irmão de Chagas e
esposo de Rachel Aleixo (sua filha mais velha) era membro do Instituto
Histórico e Geográfico da Paraíba e também possuía uma livraria em Guarabira. Leandro
conviveu com homens cultos e era uma pessoa antenada com as coisas de seu tempo.
Era também muito curioso em relação às coisas do passado. Talvez não tenha
aprimorado mais o seu estro para não se distanciar de seu público, pessoas
simples, que moravam nos engenhos, nas fazendas ou nos arrabaldes das capitais
nordestinas.
3) Como o cordel era visto pelas elites
culturais do início do século XX? E a produção do próprio Leandro?
ARIEVALDO – Se
pegarmos como parâmetro a obra de Leandro veremos que ele freqüentava livrarias,
redações de jornais, cafés, hotéis e, principalmente mercados e estações de
trem, principal meio de transporte de sua época. Pegava os temas mais em voga e
diluía a seu modo, colocando sua visão crítica e despertando uma consciência
crítica nos seus leitores. O preconceito contra a poesia popular sempre existiu
e sempre existirá. Talvez fosse mais forte no tempo de Leandro, mas isso não
impedia que homens de letras como Sílvio Romero, Leonardo Mota, Gustavo
Barroso, Câmara Cascudo, Rui Barbosa e Mário de Andrade se dedicassem à leitura
e até mesmo à pesquisa das produções poéticas dos cantadores e poetas de
bancada. Aliás, é importante lembrar que Leandro bebeu na fonte da cantoria,
mas os cantadores beberam muito mais na obra de Leandro. Você pega livros de
Leonardo Mota e encontra vários poetas declamando ou cantando criações de
Leandro como O Soldado Jogador, O Boi Misterioso, Padre Nosso do Imposto etc.,
muitas vezes sem dar o devido crédito ao autor.
O que ocorre com
grande parte dos intelectuais brasileiros é a falta de interesse por uma
cultura genuinamente nossa. É por isso que surgiram escolas literárias imitando
os franceses e os ingleses e devotando um verdadeiro desprezo às coisas de
nosso país. Foi preciso que intelectuais vindos da Europa ou da América do
Norte viessem aqui pesquisar o nosso folheto de feira e a nossa gravura, que
organizassem exposições nas maiores universidades do mundo, para que boa parte
dessa gente passasse a ver o cordel com bons olhos. Um aspecto muito positivo nessa
virada do milênio foi a adaptação que a Rede Globo fez para O Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna. Hoje você vai numa escola qualquer, nos cafundós do sertão, e toda
criança sabe quem é o João Grilo. Sabem que ele é um personagem oriundo da
tradição popular cuja popularidade consolidou-se através da Literatura de
Cordel.
4) Mesmo reconhecida por escritores e
pesquisadores do porte de Ariano Suassuna, Drummond e Câmara Cascudo, a
obra de Leandro ainda permanece desconhecida do grande público. A que você
atribui esse fato?
ARIEVALDO – Ainda
em vida Leandro enfrentou muitos problemas com a pirataria. Havia editores em
Belém-PA e Fortaleza-CE que não davam trégua e reproduziam seus maiores
clássicos em edições clandestinas. Depois de sua morte, em 1918, sua filha
Rachel e seu genro Pedro Batista continuaram editando seus folhetos e colocando
avisos veementes contra esse abuso. Rachel morreu prematuramente, aos 27 anos,
em 1921. Um desentendimento entre a viúva do poeta, dona Venustiniana e o
marido de Rachel acabou provocando a venda de todo o seu espólio ao
poeta-editor João Martins de Athayde. João Martins era bom poeta, mas queria superar
o mestre e acima de tudo preservar a sua propriedade e começou a eliminar o
nome de Leandro da capa dos folhetos, colocando apenas o seu como “Editor
Proprietário”. Depois foi mais longe... Adulterou os acrósticos de Leandro e
chegou mesmo a lançar uma antologia “O Trovador do Nordeste”, organizada por
Valdemar Valente, onde se faz passar por autor de vários poemas de Leandro. A
situação foi se agravando com o passar dos anos e piorou ainda mais quando
Athayde encerrou suas atividades, em 1949, passando todo o acervo de Leandro e
outros poetas para o editor José Bernardo da Silva, de Juazeiro. Muitos
pesquisadores desinformados, ainda hoje citam obras de Leandro como se fossem
de Athayde e até mesmo de José Bernardo. Foi necessário que surgissem pesquisas
sérias, como a de Sebastião Nunes Batista e da socióloga Ruth Brito Lemos Terra
para que Leandro voltasse à tona e fosse conhecido pelas gerações atuais. Hoje
em dia a Casa de Rui Barbosa mantém, preservado, um precioso acervo de folhetos
de Leandro em edições que vão de 1904 a 1920. Muitas delas feitas pelo próprio
autor. É isso que possibilita o resgate, mas ainda não colocou Leandro no seu
devido lugar. Poetas de menor expressão gozam de muito mais prestígio junto ao
público nos dias atuais.
(...) Continua.