terça-feira, 1 de maio de 2018

Relembrando BELCHIOR



Caricatura: Gervásio


UM ANO SEM BELCHIOR, 

UM COMPOSITOR ALÉM DE SEU TEMPO

Transcrito do blog 247

Gustavo Conde(*), 247

A música popular brasileira tem em Belchior um de seus momentos mais densos. O compositor cearense impôs ao cancioneiro brasileiro uma temática complexa, ousada e de forte apelo popular. As letras de Belchior ultrapassam a força da própria canção e invadem o regime das citações sociais de maneira fragmentária e destacada.
É uma organização discursiva espontânea e singular, muito pouco comum para um letrista pertencente ao universo da indústria fonográfica e à cultura popular das narrativas urbanas. Belchior ultrapassa fronteiras formais, instala uma voz poderosa na cena musical e cria um discurso filosófico repleto de intertextos que violenta a percepção do ouvinte tradicional da canção, sugerindo uma ação crítica deste ouvinte, seja com relação a sua existência enquanto sujeito da história, seja com relação à própria canção, numa dialética complexa e de caráter mobilizador.
Belchior escolhe com muita precisão a temática que vai servir de condutor para esta pletora de sentidos. Ele faz uso, em primeiro plano, da história. Suas canções são fortemente contextualizadas no tempo e no espaço. O Brasil dos anos 70 está lá como em poucos outros lugares: as migrações internas, o preconceito, a utopia, a opressão, a cultura como fonte de resistência, a plurivocalidade da canção popular (que se desdobra em tema), a cena familiar e passional típicas de um regime de exceção e exclusão, a amizade revolucionária, a sutileza avassaladora das metáforas que driblam a censura do próprio ‘eu’, enfim, uma organização temática que vai produzir um significado muito peculiar de unidade formal, porque, dentro da sua multiplicidade, vai servir sempre a um sentido fundador e onipresente: o sujeito que não se enquadra nas convenções sociais mas que ao mesmo tempo as respeita e as investe de delicadeza e humanidade.
Em um segundo plano formal, Belchior constrói scripts que conduzirão toda a sua obra de maneira quase obsessiva. Ele lida com dicotomias retoricamente muito poderosas e geradoras de energia narrativa: o velho e o novo, o passado e o presente, o conhecido e o desconhecido, o contemplado e o contemplador, o cantor e o ouvinte, a origem e o fim, o popular e o erudito e a urgência e o vagar.
Todos esses contrários são as molas narrativas que lançam em cena um sujeito tomado por uma tensão filosófica incessante, que estabelece um regime de temporalidades psicológicas vertiginoso, em que os espaços para distensão serão os momentos de resolução das canções, em geral seus finais, em que o eu cancional consegue respirar em meio às suas infinitas indagações existenciais.
Belchior também postula um eu cancional dotado de extrema personalidade, persuasivo, invocador, mobilizador, atentador. Um eu que quer o tempo todo tocar e invadir o espaço de seu outro, seja o objeto desejado na canção, seja o próprio ouvinte da canção. Isso se materializa numa dicção fortemente interpelativa, interlocutória, dialógica. O eu belchioriano é invasivo, revolucionário e dotado de extrema energia simbólica e física – pois ele busca e se debruça via sub narrativas nesse ‘outro’ que habita a canção.
O eu belchioriano, no entanto, vai além. Ele se estilhaça e promove um discurso polifônico, distribuindo a voz múltipla que habita o coração do compositor. A potência de um eu tão complexo e, por vezes, difuso acaba por configurar uma voz extremamente inquieta, como sói acontecer, por exemplo, em Dostoiévski. O eu cancional de Belchior adentra essa sofisticação literária e possibilita essa multiplicidade vocal que, como em Dostoiévski, pode, às vezes, ceder espaço autoral às próprias criações que emanam de uma mente concreta e localizável no mundo (Antonio Carlos Belchior e/ou Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski). Em suma, em alguns momentos um dos vários eus coadjuvantes de Belchior toma posse da narrativa cancional e joga o protagonista para uma posição narrativa secundária (isso acontece em “Paralelas”).
Belchior, portanto, não propõe um eu cancional onipresente apenas: ele propõe um regime de eus. Outra consequência dessa formalização enunciativa é uma voz concreta do intérprete de si mesmo Belchior que acabou por se tornar uma referência estética de projeção vocal. Belchior fala enquanto canta. Ele discursa, acelera os tempos, comprime a prosódia, amplifica a métrica, modula a colocatura, busca a “falha” como expressão, adensa o timbre, manipula o curso natural das resoluções rítmicas, raspa a glote em busca de profundidade passional, alterna coloquialismos, inverte posições sintáticas – aqui, já numa contaminação de sua própria concepção intelectiva das canções como unidades de sentido e de tensão.
Por fim, Belchior inaugura um ethos cancional peculiar, comum aos desbravadores de sentido, por assim dizer. Um ethos é um modo de dizer, uma dicção específica dotada de um tom específico que produz um efeito novo com relação ao conteúdo ali propagado. A título de ilustração, eu colocaria entre os desbravadores de sentido, Darwin, Freud e Marx. Esse autores não foram só autores: eles fundaram discursividades, com suas respectivas maneiras de narrar as próprias descobertas científicas.
À sua maneira, Belchior é um fundador de discursividade. Ele planeja sua peça cancional dentro de um rigor estético muito evidente, mas ao interpretar a si mesmo com sua voz única, ele intensifica ainda mais o sentido geral de seu enunciado.
Belchior é até mais que um intérprete de si mesmo no sentido estrito. Sua própria vida foi tomada pela força de sua obra. Como suas letras já relatavam uma autobiografia fragmentária que se confundia com sua própria vida de compositor e cantor celebrado na cena musical, o desdobramento de ambas, vida e obra, tomou o destino de assalto.
Belchior que amou viajar pelo Brasil e fez disso um tema recorrente em suas canções, acabou ele mesmo confinado em um país vizinho – o Uruguai – para viver seus momentos finais como indivíduo de carne e osso. Projetos interrompidos, legado mal resolvido, legiões de fãs órfãs antes mesmo de sua despedida, tudo isso poderia muito bem compor um desdobramento de sua temática cancional. Aliás, de uma certa maneira, tudo isso está lá, edificado em versos premonitórios e de raríssima beleza e força.

(*) Gustavo Conde é músico, linguista e professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos, acadêmicos e literários.

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