quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Mais uma do MANÉ LIMA


OURO NO “TÔCO PRETO”

Há poucos dias fiz uma homenagem ao meu avô Manoel Barbosa Lima por conta da passagem do seu centenário de nascimento, ocorrida no último dia 14/01. Lamentava, no final da crônica, não ter régua e compasso para traçar-lhe o perfil através de uma biografia romanceada. Alguns colegas escritores, de reconhecido talento, me encorajaram nessa tarefa que estou começando a sentir cada vez mais palpável. Falei, em meus escritos, da conduta honesta e irrepreensível do meu “Avôhai” e disse do seu desapego aos bens materiais. Mas esqueci de dizer que o comércio, mesmo prosperando de maneira honesta, deve aproveitar oportunidades, aliando a inteligência e a perspicácia ao trabalho esforçado.

Vovô costumava abominar a inveja e a ganância. “Só quero o que é meu, ganho com o meu próprio esforço”, costumava dizer. E lembrou-me certa vez, um caso presenciado por mim e pouco conhecido da família, de um astuto freguês que lhe pregou uma peça num raro momento em que a ambição lhe veio à mente. Era um velho amigo lá do Saco da Serra, comunidade que fica depois do Serrote dos Três Irmãos (ou seria o nosso bom e querido sanfoneiro Edmundo, o autor da proeza?) Não lembro... Acho mais provável ter sido o ferreiro Antônio Ângelo (todo mundo chamava “Antõe Anjo”), seu amigo dileto, um velho que andava com um vistoso chapéu de Lampião, um patuá de couro a tira-colo e roupa de mescla azul, que era dado a pregar peças e dizer gracejos. Ou talvez, ainda, fosse o velho Mundoca, mas isso não vem ao caso.

Manoel Barbosa Lima, meu avô




O certo é que este camarada chegou à bodega completamente desprovido de numerário e doido para beber. Mas era exigente. Não era qualquer bebida que agradava o seu refinado paladar. Seu objeto de desejo repousava nas últimas prateleiras do canto direito, na parte mais alta, mais escura e empoeirada do estabelecimento. Era uma safra da aguardente Dandiz, produzida e engarrafada, salvo engano, pelo Sr. Ciryno Nogueira, com duas lindas touceiras de cana entraleçadas no rótulo. Tal bebida havia sido engarrafada há mais de vinte anos, no tempo em que as tampinhas de metal eram protegidas por uma boa cortiça, que ao contrário do plástico, retém melhor o aroma e o paladar do precioso líquido. Em alguns casos, o selo de garantia que cobria a tampa se rompera pela ação do tempo (ou das traças). Em outros estava ali ressequido, quebradiço, devido a cola que fora usada para fixá-lo. A tampa, naturalmente, estava tão enferrujada que era possível perfurá-la com um palito de madeira, sem desprendimento de muito esforço. Havia também exemplares da ‘Douradinha’, da ‘Pitu’, da ‘Ypióca’ e até a rara aguardente ‘Itarumã’, todas em estado semelhante.

O freguês, com ar misterioso e valendo-se da velha amizade, ao invés de falar em fiado ou mesmo pedir uma bicada (que o dono do estabelecimento certamente não negaria), disse ao meu avô que desejava lhe falar em particular um assunto muito importante. Ante a sua insistência e seu ar de mistério, vovô o levou para a parte traseira do estabelecimento, que chamávamos de armazém, onde estavam os costais de rapadura, as sacas de café e açúcar empilhadas sobre estrados de madeira e os tambores cheios de querosene marca ‘Jacaré’. O homem, mantendo o clima de suspense, olhou desconfiado em redor e certificando-se de que ninguém os ouvia, perguntou-lhe a queima-roupa:

- Mané Lima, quanto é que vale uma bolinha de ouro mais ou menos deste tamanho? E fez um gesto com os dedos indicando que a tal esfera teria um tamanho talvez um pouco maior que uma dessas moedas de um real que temos atualmente, um limão dos médios, talvez. Era, sem dúvidas uma pequena fortuna.

Vovô, com a curiosidade acesa e talvez um pouco de cobiça lhe disse:

- Por quê, fulano? Você tem uma dessas?

O homem desconversou, tornou-se reticente, não disse que sim, tampouco que não. Voltou para o balcão e ficou lá, com o mesmo ar pensativo e misterioso de antes. Nessa época (acho que 1977) uns homens do Governo, suponho que geólogos, andavam fazendo escavações e pesquisas de campo na ladeira da Esperança, no sopé do serrote dos Três Irmãos e, principalmente, para os lados da Serrinha do Teixeira. A real finalidade dessa investida nunca se soube ao certo, apenas boatos, especulações, e de certeza mesmo o testemunho de que algumas amostras de pedras haviam sido levadas para exame laboratorial. De concreto mesmo restaram apenas alguns piquetes fincados em certos locais com estranhas numerações feitas pelos “mineiros”, que era assim que todos chamavam os tais visitantes. Eram homens arredios, de pouca conversa, que se locomoviam em jipes possantes. Em suma, apareciam e sumiam sem qualquer explicação aos curiosos nativos. Especulava-se que seria uma jazida de ouro ou talvez outro metal valioso que havia na região. Alguém mais esclarecido lembrava que havia suspeitas de um teste nuclear realizado no local na década de cinqüenta, mas esse, certamente, era uma exceção. O Nascimento (brabo), indígena domesticado, irmão do ‘véi’ Pompílio e tio da Evinha, só queria tomar umas e fazer glosas absurdas:



- Me diga quantas léguas ‘daí’

Do Crato pro ‘Cearai’...



O Valdemar Viana, ignorando certamente que a capital nos tempos do Império também era chamada “Siará” retrucou de imediato: - O Crato é no Ceará! O Crato é no Ceará... Nascimento, sem perder o pique de improvisador nato respondeu em cima da bucha:



- É muita mentira sua,

Que você nunca foi ‘lai’.



 Enquanto isso tudo acontecia, o Chico Pavio, que sempre tivera inspiração sebastianista (eu soube disso muito depois), assegurava que eram vassalos de um “prinspe” estrangeiro que viria desencantar o Reino dos Três Irmãos. Geralmente era o diabo da Dandiz que dava asas a tanta imaginação. Mas essa é outra história que deixarei para depois... Eu, com dez anos incompletos, ouvia e remoia aquelas ponderações e, sempre que tinha dúvidas, consultava minha sábia avó Alzira, afeita às leituras e à cultura radiofônica.

Como todo bom comerciante que se preza, Mané Lima sabia desde cedo que ali talvez estivesse uma boa oportunidade de negócio, quem sabe alguma explicação para a visita dos “mineiros” coisa e tal. E aquela conversa estranha do compadre... Bolinha de ouro... Mané Lima sabia também que a bebida é um excelente remédio para fazer a pessoa soltar a língua, desabafar, confidenciar, às vezes, revelar os segredos mais íntimos. Então resolveu apelar:

- Homem, você quer tomar uma bicada?

E foi logo pegando uma garrafa que estava na prateleira mais baixa e ministrando uma dose de “Cinzano” para seu próprio consumo e insinuando que iria colocar uma segunda para o visitante. Antõe Anjo (seria ele?!) protestou que não. Não estava a fim de beber “Cinzano” (esse apreciado vermouth, criado em 1757 pelo italiano Francesco Cinzano, ainda é produzido hoje em dia).

- Quer beber o quê, então?

- Manezin, eu queria uma dose daquela ‘Dandiz’ mais velha, mais antiga e empoeirada que você escondeu naquela prateleira ali em ‘riba’. Disse o sujeito, fitando o local com seu olhar de cobiça.

A cachaça era especial. O vovô só costumava abrir uma garrafa daquelas quando chegava uma visita pra lá de importante, geralmente algum parente muito chegado que morava na Capital ou por outra algum vendedor bacana, representante de alguma firma comercial com quem mantinha relações. Seu Zé Medeiros, que vendia rapadura num “Chevrolet Brasil” apreciava aquele estoque e o Hermes, um vendedor de miudezas da banda do Quixeramobim também gostava bastante. Não era de seu hábito vender para as pessoas da redondeza, sobretudo os que andavam sem dinheiro, pedindo uma bicada nos pés de balcão. Mas vá lá, o caso era diferente, a mutuca da curiosidade já o havia picado e, talvez, a da cobiça também. Todo ser humano tem seus momentos de fraqueza (os de franqueza eram mais freqüentes no meu avô. Então ordenou-me que subisse numa banca onde guardava o dinheiro, me apoiasse na prateleira mais acima e tentasse retirar uma das tais garrafas, tendo ele o cuidado, logicamente, de se postar logo abaixo para segurar-me caso eu fosse mal sucedido na empreitada.

Subi, e apesar da pouca idade que tinha na época consegui resgatar exatamente a garrafa que era o objeto do desejo. Ao lado dela havia outras, também velhas e empoeiradas, mas de safra mais recente. Aquela, certamente, era do final da década de 1950. Os olhos do visitante encheram-se de alegria e vovô ministrou-lhe uma dose caprichada, quase uma terça. O homem cheirou, provou, aprovou e tomou toda de uma vez, sem fazer careta. Bateu o copo no balcão, fez sinceros elogios à bebida e pediu para repetir. Vovô também tomou uma bicadinha pequena, para acompanhá-lo. Passaram-se uns quarenta minutos, uma hora talvez e nenhuma palavra sobre a misteriosa “bolinha de ouro”. Vovô, por discrição e prudência, refreava a curiosidade esperando o homem voltar ao assunto. O compadre, por sua vez, parecia ter esquecido completamente o negócio da bolinha e se esbaldava na Dandiz. Quando percebeu que a garrafa já estava se esvaziando e que era intenção do camarada pedir uma segunda vovô criou coragem e tocou no assunto abertamente, como era do seu feitio:

- Compadre fulano, e aquele assunto que você me falou em particular, de que se trata mesmo? Você tem uma bolinha de ouro para vender?

- Qual o quê, Manezinho, quem me dera... Só perguntei porque sei que você é comerciante, acostumado a pegar em dinheiro e por isso tem base das coisas. Já pensou...? Com essa história que tão espalhando por aí sobre mina de ouro, quem sabe se eu não encontro uma dessas?!

E saiu todo faceiro, de volta pra casa, enquanto meu avô resmungava com seus botões:

- Nosso Senhor tem muito morador fela-da-gaita!

Eis uma das razões pelas quais o Mané Lima tinha verdadeira aversão à cobiça e à mentira. Se contei alguma “cabeluda”, ele que me perdoe. É que a literatura precisa de tais enfeites que o populacho chama vulgarmente de lorota.
ARIEVALDO VIANA LIMA

(Esse texto é um rascunho para o projeto livro"Sertão em desencanto")

2 comentários:

  1. As história de "seu" Mané Lima são saborosas. O Ari devia botar no papel aquela, acerca de um pedido de casamento etc. Mas suponho que há censura pelo meio. kk

    ResponderExcluir
  2. Pedro, depende da maneira como a gente narra. Às vezes pode-se cantar a reza sem dizer o nome do santo. kkkkkk

    ResponderExcluir