domingo, 17 de maio de 2020

LETRAS DO CEARÁ


Fundação Demócrito Rocha dá início a curso sobre literatura cearense nesta segunda; inscrições estão abertas


"Literatura cearense: notas introdutórias" é o tema do primeiro fascículo do curso de extensão "Literatura cearense", composto por doze módulos. Curso terá videoaulas, podcasts e webconferências

Por: IVIG FREITAS | O POVO




Rachel de Queiroz (Foto: Carlus Campos)

Tem início na segunda, 18, o curso básico de extensão gratuito “Literatura Cearense”, promovido pela Fundação Demócrito Rocha. “Literatura cearense: notas introdutórias” é o tema do primeiro dos doze fascículos que compõem o curso. Além do material impresso, todo o conteúdo digital complementar poderá ser acessado por meio do site da Universidade Aberta do Nordeste (Uane). O curso é gratuito e aberto ao público e reúne profissionais e estudiosos da literatura do Estado e seu conteúdo percorre os diferentes caminhos que formam as letras do Ceará e a ligação com sua gente.
Com participação e curadoria do professor de literatura Charles Ribeiro, a primeira aula do curso busca apresentar aos alunos um panorama geral das letras produzidas no Ceará, desde o seu surgimento à contemporaneidade. A intenção é apresentar para todos uma historiografia ampliada da nossa produção literária”, conta o escritor Raymundo Netto, coordenador geral do curso. As inscrições ainda estão abertas e podem ser feitas pela plataforma de cursos da FDR.
Serão 12 fascículos encartados sempre às segundas-feiras no O POVO e também disponibilizados em formato digital. As videoaulas serão exibidas às quintas-feiras na TV O POVO, com duração de 15 minutos. Os alunos também poderão contar com seis podcasts que terão a participação de conteudistas e convidados, transmitidas pela Rádio O POVO CBN 1.010 AM aos sábados sempre às 9h. Todo o material do curso estará disponível numa sala de aula virtual e, ao final do curso, os inscritos receberão certificação pela Universidade Federal do Ceará.

As aulas tratam de diversas temáticas que constituem a historiografia da literatura cearense, como o romantismo, o realismo, a escrita feminina e literatura fantástica e cordel. Gratuita, a iniciativa visa despertar o interesse e a leitura da literatura produzida no Ceará, desde a sua origem à contemporaneidade - contada por meio de seus autores, agremiações literárias e obras referenciais, em consonância com os estudos da Literatura Brasileira. Voltado para educadores, pesquisadores ou estudantes em geral, o curso busca alcançar diferentes públicos interessados em conhecer melhor a produção literária do Estado, que tem seus primeiros registros datados do século XIX.



Inscrições gratuitas por meio do link
http://admcursos.fdr.org.br/inscricao/31

CONTEÚDO

MÓDULO 1 - LITERATURA CEARENSE: NOTAS INTRODUTÓRIAS
Autores: Charles Ribeiro e Lílian Martins.

MÓDULO 2 - SOB AS ASAS DA JANDAIA: ROMANTISMO Parte I
Autor: Paulo de Tarso Pardal.

MÓDULO 3 - POEMAS PARA A LIBERDADE: ROMANTISMO Parte II
Autor: Carlos Vazconcelos.

MÓDULO 4 - MULHERES ESCRITORAS: AS PIONEIRAS NO SÉCULO XIX
Autoras: Gildênia Moura e Carla Castro.

MÓDULO 5 - JUNTOU A FOME COM A VONTADE DE LER: REALISMO/NATURALISMO
Autor: José Leite Jr.

MÓDULO 6 - À ESPERA DO PÃO: A PADARIA ESPIRITUAL E O SIMBOLISMO
Autor: Sânzio de Azevedo.

MÓDULO 7 - O CANTO NOVO DE UMA RAÇA: PRÉ-MODERNISMO E MODERNISMO
Autor: Raymundo Netto.

MÓDULO 8 - LITERATURA E ARTES PLÁSTICAS: GRUPOS CLÃ E SCAP
Autores: Vera Lúcia de Moraes e Anderson Sousa.

MÓDULO 9 - DA VANGUARDA À DITADURA: LITERATURA EM ENCRUZILHADAS
Autoras: Fernanda Diniz e Kedma Damasceno.

MÓDULO 10 - ESCRITOS DO IGNOTO: A LITERATURA FANTÁSTICA
Autora: Aíla Sampaio.

MÓDULO 11 - MALA DE ROMANCES: A LITERATURA DE CORDEL
Autores: Arievaldo Viana e Stélio Torquato.

MÓDULO 12 - ITINERÁRIOS DE LEITURA: UM PASSEIO PELA LITERATURA DO CEARÁ
Autoras: Lílian Martins, Vanessa Passos e Nina Rizzi.




quinta-feira, 14 de maio de 2020

MESTRES DO CORDEL



UM POUCO DA HISTÓRIA DO POETA-EDITOR JOAQUIM BATISTA DE SENA 

Por: Arievaldo Vianna


No dia 8 de junho de 1982, ocorreu um grande acidente aéreo na Serra da Aratanha, próximo ao município de Pacatuba (na Região Metropolitana de Fortaleza-CE). Um Boeing 727-200 (voo VASP 168) chocou-se contra a montanha, causando a morte de todos os 136 ocupantes, numa das maiores tragédias da aviação comercial brasileira.
Segundo o noticiário da época, o comandante pediu para deixar o nível de cruzeiro a aproximadamente 253 km de Fortaleza, quando pelas cartas de navegação utilizadas para a aproximação ao Aeroporto Pinto Martins deveria fazê-lo a 159 km. Tanto o controle de tráfego quanto o seu auxiliar não questionaram o motivo de descer tão longe. Ao estabilizar na altitude autorizada pelo tráfego, já dava para ver as luzes da capital cearense. Foi quando o copiloto disse: "Não tem uns morrotes aí na frente?". Nesse momento, o Boeing da Vasp sobrevoava a região de Pacatuba. Seis alarmes soaram na cabine, mas o piloto os ignorou, e, às 02h53, o Boeing se chocou contra a Serra de Aratanha sem deixar sobreviventes.
Tragédias como essa jamais passam despercebidas pelos poetas do Cordel, notadamente os adeptos do folheto reportagem. Assim, em julho daquele ano, cerca de um mês após o grande acidente, eu me encontrava na Praça José de Alencar (ou seria na Praça da Estação?), em Fortaleza, dentro de um ônibus que me levaria até Maranguape, quando subiu um senhor alto, meio avermelhado, pele tostada pelo sol de verão da nossa capital, conduzindo um maço de folhetos na mão. Pediu-nos um minuto de nossa atenção e começou a contar a tragédia nos versos que se seguem:

Com ordem e consentimento
Do Grande Deus Verdadeiro
Vou narrar uma tragédia
Que abalou o estrangeiro
Enlutando o Ceará
E quase o Brasil inteiro.

Quando um avião da VASP
Por coincidência estranha
Com toda força arrojou-se
No Pico da Aratanha
Se transformando em pedaços
No choque com a montanha.

Já chegando em Fortaleza
Num instante temeroso
Cento e trinta e seis pessoas
De um modo tenebroso
Morreram sem esperar
No desastre pavoroso.

(...)

Sobrevoando o espaço
Na Serra da Aratanha
O comandante do Boeing
Por motivo que estranha
Invés de passar por cima
Chocou-se contra a montanha.

Ouviu-se um grande estrondo
Pela alta madrugada
Avisaram à [sic] Fortaleza
Seguiu gente em disparada
Para socorrer as vítimas
Da tragédia inesperada.

Um bebê de cinco meses
Que no Boeing viajava
Naquele exato momento
Na porta do céu entrava
E atrás dele um cortejo
De almas lhe acompanhava.

(...)

(A tragédia do avião que se espatifou no Pico da Aratanha e matou 136 pessoas – Joaquim Batista de Sena / Vidal Santos, 1982).

O curioso personagem em questão era ninguém menos que o poeta, editor e folheteiro Joaquim Batista de Sena, um dos grandes expoentes da nossa Literatura de Cordel que dava continuidade a um ofício por ele iniciado há quase 50 anos. Pelo que pude apurar posteriormente, o folheto escrito em parceria com o poeta Vidal Santos (Beneditinos-PI) teve posteriormente uma enorme tiragem patrocinada pelo Café Guimarães, sendo distribuída gratuitamente pelos revendedores dos produtos dessa empresa. Além dessa obra, de cunho jornalístico, o velho poeta trazia também outros títulos de sua autoria, que foram comercializados no interior do coletivo. Eu já conhecia o poeta de nome, uma vez que lera alguns títulos de sua lavra, como História de Braz e Anália e Os amores de Chiquinha e as bravuras de Apolinário, ambos editados na Casa dos Horóscopos, editora de Manoel Caboclo e Silva, sediada em Juazeiro do Norte.  Fiquei admirando a desenvoltura do velho trovador, que falava desembaraçadamente, com voz impostada e boa dicção. Qualquer verso tornava-se bonito na sua voz, desde que fosse metrificado, condição da qual o poeta jamais abria mão. Segundo Guaipuan Vieira, Paulo de Tarso e outros poetas que conviveram com ele nesse período, o velho mestre tremia de indignação quando via um verso mal feito, de métrica ruim e rimas claudicantes:
Isto é uma vergonha!
E se o autor estava por perto, abrandava o tom de voz e dava úteis conselhos para aprimoramento de seu estro. Em meu livro Acorda Cordel na Sala de Aula, segunda edição impressa em 2010, fiz questão de apresentar uma galeria de grandes poetas, dando especial destaque ao nome de Joaquim Batista de Sena, um poeta-editor que atuou por anos e anos em terras cearenses. Eis o texto, devidamente acrescido de algumas informações:




Joaquim Batista de Sena,
 um continuador da tradição


Joaquim Batista de Sena foi o maior editor de cordel em Fortaleza entre os anos 1950 e 1970


JOAQUIM BATISTA DE SENA nasceu no dia 21 de maio de 1912, no sítio Lagoa de Pedras, próximo à Fazenda Velha, na época integrada ao município paraibano de Bananeiras, hoje pertencente à  Solânea-PB. O poeta era filho de Manoel Batista de Sena e Francisca Ana das Dores (Francisca Batista de Sena, após o casamento), lavradores e pequenos proprietários rurais. Faleceu no dia 13 de outubro de 1993 em Fortaleza-CE e foi sepultado no cemitério Parque da Paz, nesta capital, conforme Certidão de Óbito adquirida pelo pesquisador José Paulo Ribeiro, de Guarabira-PB,  por intermédio da filha do poeta Ivete Sena. Fazemos questão de ressaltar essa contribuição de José Paulo porque muitos pesquisadores ou ignoravam ou davam uma data completamente errada para a morte do poeta.

No folheto Sertão, cardos e cantadores (Tipografia Graças Fátima, s.d.), Joaquim Batista de Sena apresenta alguns textos autobiográficos, alternando a prosa e a poesia, como é o caso do poema “A minha Lagoa de Pedras”, que trata do local de seu nascimento:

Minha Lagoa de Pedras
Minha campina saudosa
Planalto onde eu nasci
Numa manhã radiosa
E onde o sol à tardinha
Se punha da cor de rosa.

Minha floresta sortida
De amorosa e pereiro
De gachumba e umburanas
Catingueira e marmeleiro
Macambira e xique-xique
Icó, cardeiro e facheiro.

Parece-me ouvir o pranto
Das cigarras do inverno
Naquelas matas frondosas
Cada um canto doce e terno
Como as trombetas dos anjos
Nas diversões do Eterno.

Na transformação do homem
Não digo que Deus é mau
Embora eu morra cantando
Triste como o urutau,
Os tempos da minha infância
Dos meus cavalos de pau.

Autodidata, adquiriu vasto conhecimento sobre cultura popular e era um defensor intransigente da poesia popular nordestina. Começou como cantador de viola, permanecendo três anos nesse ofício, no final da década de 30, conforme depoimento gravado pelo Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS).  Ainda nessa preciosa declaração, Batista de Sena diz que aprendeu a ler com imensa dificuldade numa Carta de ABC de Landelino Rocha, auxiliado por um feitor de estradas que passava rapidamente pela manhã e lhe ensinava uma lição, retornando somente no final da tarde para retomá-la. Nas páginas finais dessa pequena cartilha, que tem o mesmo formato dos folhetos de cordel, lê-se a seguinte máxima: “A perseverança vence todas as dificuldades”. Realmente, o grande poeta paraibano teve que superar inúmeros obstáculos, os quais conseguiu vencer graças a sua inteligência e, sobretudo, à perseverança.


No início da década de 40, vendeu um sítio de sua propriedade e adquiriu sua primeira tipografia, que funcionou algum tempo na cidade de Guarabira-PB, transferindo-se depois para Fortaleza, onde atuou durante muitos anos. Dizia-se discípulo de Leandro Gomes de Barros e era admirador incondicional de José Camelo de Melo. Na capital cearense, sua casa editora chamou-se inicialmente “Folhetaria São Joaquim” ou “Editora O Crepúsculo” e funcionou inicialmente no bairro Floresta (Rua Estrela do Norte, 26, hoje Álvaro Wayne). Depois a tipografia adotou o nome de “Folhetaria Graças Fátima” e passou a funcionar na Rua Liberato Barroso, 725, no centro de Fortaleza.
O poeta explicava a razão desse título: durante a passagem da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pelo Nordeste, na década de 50, ele conseguiu ganhar muito dinheiro vendendo folhetos sobre a visita da santa, ampliando consideravelmente seus negócios. Por essa época, foi vítima de um naufrágio da Baía de Quebra-Potes (Maranhão). Salvou-se nadando, mas perdeu uma mala de folhetos, contendo diversos originais.
Em 1973, vendeu sua gráfica e sua propriedade literária para Manoel Caboclo e Silva e tentou estabelecer-se no Rio de Janeiro, também no ramo da literatura de cordel, mas não foi bem sucedido. De volta ao Ceará, ainda editou alguns folhetos de sucesso, como o que escreveu em parceria com Vidal Santos, sobre o desastre aéreo da Serra da Aratanha (Pacatuba-CE), onde faleceu, dentre outros, o industrial Edson Queiroz.
Na década de 1980, o poeta viveu por alguns anos no Rio de Janeiro, para onde se mudou com parte da família. Ali tentou montar uma editora de cordel, porém não foi adiante, pois os filhos preferiam direcionar as atividades da gráfica para o ramo comercial. Nesse período, conviveu com Gonçalo Ferreira, Raimundo Santa Helena, Mestre Azulão, Apolônio Alves dos Santos e outros poetas em atividade na Feira de São Cristóvão, tornando-se um dos fundadores da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – ABLC, surgida em 1987.
Sena era um grande poeta, de verve apurada e rico vocabulário. Conhecia bem os costumes, a fauna, a flora e a geografia nordestina, motivo pelo qual seus romances eram ricos em descrições dessa natureza. Pode-se dizer que com a sua morte, fechou-se um ciclo na poesia popular nordestina e o gênero “romance” perdeu um de seus maiores poetas. Só agora, no início deste novo século, surgem novos romancistas que pretendem dar continuidade à trilha deixada pelo mestre.
Com relação ao seu posicionamento político, explicitada principalmente em folhetos-reportagem das décadas de 1960 e 70, convém notar que o poeta era direitista e extremamente influenciado pela ala conservadora da igreja católica, diferentemente de Leandro e José Camelo, poetas que admirava, e que tinham um senso crítico aguçado e espírito libertário. O mesmo se pode dizer, por exemplo, de Rodolfo Coelho Cavalcante, outro poeta de sua geração. Essa sua postura conservadora não passou despercebida a estudiosos que se ocuparam de sua obra, como Eduardo Campos (em Cantador, Musa e Viola) e Ivan Cavalcanti Proença (A Ideologia do Cordel).
Ideologia a parte, o que se sobressai na obra de Joaquim Batista de Sena é o seu profundo conhecimento dos hábitos e costumes sertanejos e perfeito domínio das técnicas de narrativa. Ademais, sua boa sintonia com o público nos deixou um legado de, pelo menos, uns vinte clássicos da Literatura de Cordel.
Entre as suas obras de maior recepção popular, destacamos: A filha noiva do pai ou Amor culpa e perdão; A morte comanda o cangaço; As sete espadas de dores de Maria Santíssima; Estória de Manoel Seguro e Manoel Xexeiro; História de João Mimoso e o castelo maldito; História de Braz e Anália; Os amores de Chiquinha e as bravuras de Apolinário; História do assassinato de Manoel Machado e a vingança do seu filho Samuel; História dos três irmãos lavradores e os três cavalos encantados; Luta e vitória de São Cipriano contra Adrião Mágico; História do Príncipe João Corajoso e a princesa do Reino Não-vai-ninguém; História da novela de Antônio Maria em versos de cordel; O defensor da honra e o Barba Azul do Sertão; História da vida, morte e enterro de Fernando da Gata; O amor de uma órfã ou Conrado e Lúcia e Estória do Rei teimoso.

Principal fonte de consulta: VIANA, Arievaldo. Acorda Cordel na Sala de Aula, 2010, p. 89

terça-feira, 14 de abril de 2020

HOMENAGEM A MORAES MOREIRA



Ilustração do livro "A história dos Novos Baianos em Cordel", 
lançado pela Editora IMEPH na Bienal do Livro de SP, em 2018.


Cordel: A Chegada de Moraes Moreira no Céu

Além de músico, artista morto nesta segunda (13) também se destacou na literatura de cordel; leia homenagem do poeta Elton Magalhães


Moraes, Elton Magalhães e José Walter Pires


O cantor Moraes Moreira, que faleceu nesta segunda-feira (13), aos 72 anos, além de ter se eternizado na música popular brasileira com grandes clássicos como 'Preta Pretinha', 'Chame Gente', 'Chão da Praça', entre muitos outros, também se destacou pela sua produção poética através da literatura de cordel.

Em 2015, passou a ocupar a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que tinha como patrono o poeta paraibano Manoel Monteiro. Desde então, suas apresentações passaram a ser um misto de música e recital.
Além de ter escrito um livro contando “A História dos Novos Baianos e Outros Versos”, publicou também “Poeta Não Tem Idade” e o álbum “Ser Tão”, no qual equilibra canções e textos. Numa das faixas, inclusive se assume nessa nova fase: “De Cantor Para Cantador”.

Também poeta e cantador, o professor baiano Elton Magalhães compôs, com exclusividade para o CORREIO, um poema que fala da chegada de Moraes no plano superior (tipo de homenagem bem comum entre os cordelistas). Por lá, é recebido por outros bambas baianos que deixaram saudade e entraram para a eternidade. Confira o texto na íntegra.



Arte: Amanda Lima/Divulgação

A CHEGADA DE MORAES MOREIRA NO CÉU
Autor: Elton Magalhães

Em tempos de pandemia
O mundo respira o mal
Mas os grandes da Bahia
Vão de morte natural
Pr’um outro plano fazer
Um bonito Carnaval.

Assim foi com Riachão
Que abriu as portas do céu
Dizendo: - Saaaaamba, São Pedro!
Com seu lencinho e chapéu
Ganhando dos seus amigos
Um merecido troféu.

Com o samba comendo solto
A multidão foi chegando:
Batatinha deu o tom
Ederaldo foi somando
E o clã baiano no céu
Logo foi se amontoando.

Raulzito, inebriado,
Sentou-se pra observar
Ao lado de Dorival
A baianada chegar
Acompanhada do trio
De Dodô e de Osmar.

A festa estava montada
Santa Dulce abençoando
E ao som da guitarra elétrica
Com os mestres no comando
A chegada de outro mito
O trio ia anunciando.

São Pedro saiu da roda
Pra deixar a porta aberta
E nesse exato momento
A todos fez um alerta:
“Abram alas pra Moraes
Que pr’este plano desperta!”

Tímido, ele foi chegando
E no trio já foi subindo
Foi pegando o microfone
E pro seus mestres sorrindo
Disse a todos “salve salve!
Veja só que dia lindo!”

Pra manter o ritual,
Puxou o Pombo Correio
Dizendo: “sempre sonhei
Em ver esse bloco cheio
Mas cadê meu grande mestre?
Por que será que não veio?”

Certamente ele falava
Do bruxo João Gilberto
Que até mesmo lá no céu
Mantinha o hábito certo
De ficar enclausurado
Com seu pijama coberto.

Mas a comoção foi grande
E logo João chegou
Pois Caymmi, seu amigo,
Da mesa se levantou
Puxou João pelo braço
E este de pronto aceitou.

João Gilberto que estava
Calado até o momento
Disse: “Moraes você é
Sim o meu maior rebento
O grande orgulho da raça:
Receba o meu cumprimento!”

“Acabou chorare, gente!
Eu agora sou eterno
Fugi do triste Brasil
Que se tornou um inferno
Espero que o céu se mostre
Em tudo um lugar fraterno.

Deus me faça brasileiro
Criador e criatura
Nessa terra que é de todos
Distante dessa amargura
E que os meus que lá ficaram
Tenham jogo de cintura.

Nasci em Ituaçu
Lá no Sertão da Bahia
Terra de todo o encanto
Terra de força e magia
Sou filho de Dona Nita
Que sempre foi minha guia.

Com um baiano aprendi
A arte do violão
Tom Zé, o primeiro mestre,
Deu grande contribuição
Pois pra mim a Tropicália
Foi de grande inspiração.

Com os amigos Pepeu,
Baby, Paulinho e Galvão
Tracei uma linda história
Que levo no coração
Os Novos Baianos foram
Pra mim a grande lição.

Segui dando o meu melhor
Para o carnaval baiano
E aos poucos do trio elétrico
A história eu fui mudando
À fobica eu dei a voz
E segui me alumbrando.

Com o meu irmão mais velho,
Zé Walter, o menestrel,
Aprendi métrica e rima
Peguei caneta, papel
E logo fui descobrindo
O universo do Cordel.

Assim, fiz minha passagem
De cantor pra cantador
Exaltando o meu sertão
E esse povo de valor
Homenageei os mestres
Que em vida eu dei valor.

O grande artista do século
É o nosso Rei do Baião
Nesses versos de carinho
Exaltei nossa nação
Através do maioral:
O eterno Gonzagão”.

Foi assim que num rompante
Mestre Lua apareceu
Com seu fole de cem baixos
E a todos ali deu
Um presente: a Asa Branca
O céu todo comoveu.

Moraes Moreira chorando
Diante da emoção
Foi cantando “chame gente”
E assim uma multidão
Foi pelas nuvens pulando
Em grande celebração.

Tocaram Frevo Mulher
Depois Cara e coração
Desabafo e desafio
E Pedaço de canção
Mas o que veio depois
Explodiu a multidão:

Carnaval em cada esquina
Só não foi mais badalada
Do que a épica Vassourinha
Que deixou embriagada
Toda uma multidão
Que estava ali deslumbrada.

Riachão também subiu
No trio causando um rebu
Carregava cachacinha
Meladinha no caju
E pegando o microfone
Foi puxando Besta é tu.

Raul, chegado ao “caju”
Sendo de pouca etiqueta
Também chegou na fobica
E tirou duma maleta
Sua gaita pra tocar
O Mistério do Planeta.

Caymmi também subiu
Preparado para a guerra
Levando João no braço
(Esse é certo: nunca erra)
Com Moraes então fizeram
O Samba da minha terra.

Depois dessa grande festa
E justa recepção
O mestre Moraes, sereno,
Iniciou um sermão
Pra todos ali presentes
Eis sua declaração:

“Sigo sendo como posso
E mostrando como sou
Morri dormindo, e assim
Sei que Deus me abençoou.
Pela vida que vivi
Orgulhoso aqui estou.

Na minha velha Bahia
Quando era bem menino
E eu ainda digo mais:
Menino e beduíno
Com jeito de mercador
Preparei singelo hino!

Peço a Deus que nesse instante
Se compadeça do povo
Que na terra, isolado,
Quer viver livre de novo
E que essa pandemia
Deixe de ser um estorvo.

Para o povo lá da Terra
Eu só queria escrever
‘Tudo passa e em breve
Todos poderão dizer:
Abra a porta e a janela
E vem ver o sol nascer’”

Elton Magalhães, 13/04/2020

Fonte: JORNAL CORREIO (da Bahia)