sábado, 27 de julho de 2019

LANÇAMENTO EDITORA IMEPH


Lucília Garcês lança livro sobre Ariano 
Suassuna com ilustrações de Jô Oliveira



Credito: Reprodução. Ilustração de Jô Oliveira para o livro Ariano Suassuna, 
de Lucília Garcez.

Por: Severino Francisco

Ariano Suassuna era um personagem em busca de um autor ou de autores que o apresentassem às crianças. Não é mais. Ele encontrou a escritora Lucília Garcez e o ilustrador Jô Oliveira, uma mineira e um pernambucano que se rebrasileirizaram em Brasília. Eles escreveram uma encantadora biografia de Ariano para as crianças (Editora Imeph), mas, que, como toda obra de qualidade pode ser lida por pessoas de qualquer idade.


Ilustração de Jô Oliveira: o real e o mítico entrelaçados na vida de Ariano Suassuna.

A narrativa de Lucília e Jô evolui como um cortejo de maracatu, numa sintonia perfeita entre palavra e imagem. Nos joga, de maneira sensorial, no mundo de Ariano, com sensibilidade e delicadeza: o cotidiano em Taperoá,cidadezinha do sertão da Paraíba; as feiras, as festas populares, os teatrinhos, as cantorias, a chegada do circo. Na precariedade, era possível garimpar um universo cultural riquíssimo. Ariano puxou o fio da tradição medieval transplantada para o nordeste brasileiro.
Como bem diz Flávia Suassuna na apresentação, a biografia revela não apenas os elementos que fizeram Ariano ser Ariano, mas, também, as formas, os sons e as cores. É, ao mesmo tempo, uma biografia e uma fábula.
Ele parece um personagem saído diretamente de um folheto de cordel para a realidade.

Quando era garoto, quis fugir com o circo e só não conseguiu porque levou uma tremenda bronca da mãe. Ficou a frustração de ser palhaço, mas, na fase final da vida, Ariano realizou a vocação plenamente com as suas aulas-espetáculos, em que mistura a erudição de professor de estética com a verve popular de João Grilo paraibano. Ao arrancar o riso das plateias ele ficava com o brilho nos olhos de menino encantado, comemorava cada gargalhada como se fosse um gol.


 Capa do livro Ariano Suassuna; de Lucília Garcez, com ilustrações de Jô Oliveira.

Antonio Candido disse que os grandes homens desapareceram, pois eles dependem das utopias. E Ariano é dessa linhagem, é um Quixote paraibano de múltiplos talentos, mas, antes de tudo, poeta. O Quixote é um herói moral, tem um ideal tão alto que as derrotas não o desmerecem; as derrotas o engrandecem.

A biografia escrita por Lucília e ilustrada por Jô nos revela que a história de Ariano se entrelaça de maneira indivisível com a história brasileira e com a história da cultura popular nordestina. Ele é um personagem épico. E, neste momento, nós estamos precisando, dramaticamente, de brasileiros que nos engrandeçam.
Imagino que, onde estiver, ao folhear o livrinho de Lucília e Jô, Ariano deve estar chorando as lágrimas de esguicho de que fala Nelson Rodrigues, lágrimas da mais pura alegria.



Ilustração de Jô Oliveira: Ariano tinha múltiplos talentos, mas era, antes de tudo, poeta

Fonte: CORREIO BRAZILIENSE

quinta-feira, 25 de julho de 2019

MENDIGOS TROVADORES


Antiga estampa do padroeiro de Canindé

NOTAS FOLCLÓRICAS SOBRE OS FESTEJOS DE SÃO FRANCISCO DE CANINDÉ


Santuário de São Francisco


O poeta, prosador e jornalista José da Cruz Filho (foto ao lado), nascido em Canindé, aos 16 de outubro de 1884 – e falecido em Fortaleza, a 24 de agosto de 1974, foi príncipe dos poetas cearenses, e membro da Academia Cearense de Letras. Como jornalista, fundou o primeiro jornal que circulou em sua terra natal (O Canindé, de 1903) e colaborou em outros que surgiram posteriormente. Num artigo extraído do jornal A IMPRENSA, do qual foi redator, temos um curioso artigo onde o poeta se diz “folclorista”.

As oficinas gráficas do Convento de Canindé-CE lançaram, a 22 de junho de 1913, um semanário chamado A IMPRENSA, mantido pela Casa de São Francisco e redigido pelo poeta Cruz Filho. A direção do estabelecimento tipográfico naquele tempo coube a Tomás Barbosa. Apareceram ao todo trinta números deste órgão, até 11 de janeiro de 1914. No livro “São Francisco das Chagas de Canindé” Frei Venâncio Willeke destaca um artigo publicado num dos números daquele semanário, possivelmente escrito por Cruz Filho, seu principal redator. Eis a transcrição de um artigo da IMPRENSA de 4-10-1913 referindo-se aos cantadores cegos ou aleijados que esmolavam durante os festejos do padroeiro de Canindé:

“NOTAS FUGACES”

Ele veio de longe, dos sertões altos de S. João do Rio do Peixe, no Estado da Paraíba do Norte... Apoiado às muletas frágeis, vencendo as areias ardentes, transpondo as duras charnecas, com uma imensa desventura nos olhos tristes e uma radiosa esperança no coração, viu, numa clara manhã de alegre sol, brancas e fulgindo no azul, as torres prestigiosas de São Francisco de Canindé.
Fugira o aleijadinho às mãos sábias dos médicos, que lhe quiseram amputar a perna chagada, num hospital do Recife, e viera, vingando as ásperas charnecas, sentar-se à sombra magnânima do templo prestigioso e unir a sua voz, numa ardente súplica rimada à confusa voz de outros náufragos da vida, – cegos, leprosos e aleijados – que a mesma ingrata vaga dos negros destinos humanos lançara e fraternizara nos mesmos estreitos palmos de terra. E ali no burburinho tumultuoso dos pregões festivos, no profuso rumor das multidões complexas, implorando a caridade das turbas felizes, o bando sinistro dos desgraçados, para quem a vasta noite da vida não tem esperança de aurora, procura chamar a atenção indiferente dos ditosos e estranhos para a sua imensa desventura sem remédio...
A festa de São Francisco de Canindé reúne a mais variada coleção de tipos sociais. São vastas ondas humanas que afluem, sôfregas, a presenciar os festejos celebérrimos do grande Santo dos doces milagres.
E o folclorista, curioso e deslumbrado, vê abrir-se ante os seus pasmos olhos de psicólogo amador uma estranha flora da emoção do vago sentimento da rude alma popular. E‟ a parte dolorosa da poesia do povo. São rudes almas de poetas que dizem cantando a sua imensa desdita. Ponteando os brados alegres, surtem como tristes ais doloridos, essas vozes mendigas de desgraçados sem lar que cantam e que imploram:

Meu irmão me dê uma esmola,
Que eu lhe peço, é por amor
Pelo cálice, pela hóstia
Que hoje se levantou! . . .

E as multidões param assombradas, diante desses poetas maltrapilhos, e as moedas caem sonoras nas bacias minúsculas de folha de flandres, acompanhadas pela aflita voz implorativa que agradece em ingênuas rimas sinceríssimas:

A quem me deu sua esmola,
Deus acrescente seu bem;
Que de um produza dez,
Que de dez produza cem...


Poeta Bentevi Neto


Cantadores se apresentavam nessas barracas, construídas no leito do Rio Canindé


Vai nessas rimas toda a psicologia desses simples, toda a sua arte de mover, com as angustiadas estrofes, o duro coração humano:

Quando Deus andou no mundo,
A São Pedro disse assim:
Quem não quer pobre na porta,
Também não me quer a Mim...

A luta amarga pela vida lhes ensinou, a eles, que nunca viveram os caminhos amáveis do coração e os meios ardilosos de prender e comover a fugitiva caridade das turbas:

Meus irmãos, me deem uma esmola,
Por Jesus de Nazaré,
Por São Francisco das Chagas,
Padroeiro do Canindé...

E ele, esse poeta de treze anos que viera pelos duros caminhos sertanejos, das longes terras da Paraíba do Norte, erguia também, no confuso tumulto das cantigas trêmulas, a sua fina voz de criança, dizendo toda a infinita amargura da sua triste primaveras sem botões:

Meus irmãos, me deem uma esmola,
E queiram me proteger,
Que eu perdi minha saúde,
Não tenho mais que perder...
Perdi os gostos da vida;
Vivo triste até morrer...

Aquela voz de mendigo justificava perante a desatenta caridade humana o seu amargurado e angustioso pedido em versos ingenuamente impressionadores:

Meus irmãos, me deem uma esmola;
Tenham dó do meu penar
Que eu perdi minha saúde,
Não posso mais trabalhar.

Se eu tivesse minha saúde,
Como todos têm a sua,
Não ia de porta em porta,
Pedindo esmola na rua,
Comendo fora de horas...
Ai meu Deus, que sorte crua!...

E as moedas, os níqueis, os cobres caíam, choviam na bacia de folhas de flandres estendida à caridade dos transeuntes e, de novo, a triste voz magoada se elevava, sonora e agradecida:

A quem me deu sua esmola,
Deus o leve num andor,
Acompanhado de anjos,
Circulado de fulô...
Nossa Senhora o proteja
Quando deste mundo for...

“É uma vasta classe, digna do estudo de um amador perspicaz, essa classe dos mendigos – possuindo o seu argot particular, mantendo a sua solidariedade, também a sua rivalidade feroz de oficiais do mesmo ofício”.

In WILLEKE, Frei Venâncio - São Francisco das Chagas de Canindé, Editora Vozes, 1973

terça-feira, 23 de julho de 2019

POEMA DE ALBERTO PORFÍRIO



Em 1978 meu pai apareceu em casa com um livro maravilhoso que marcou a nossa infância: "POETAS POPULARES E CANTADORES DO CEARÁ", de Alberto Porfírio. Ouço, portanto, falar de Alberto Porfírio desde a minha primeira infância, pois na casa de meus avós aconteciam cantorias e dentre os poetas convidados estavam Alberto, seu irmão José Porfírio e o cantador Antônio Ribeiro Maciel, de Quixeramobim. Minha avó, Alzira de Sousa Lima, colecionava folhetos de cordel e tinha prodigiosa memória. 

Meu avô, Manoel Barbosa Lima, também apreciava os cantadores e os folhetos de Cordel. Mas não era de seu agrado que meu pai se tornasse um repentista, pois considerava a profissão incerta. Na verdade ele não queria que meu pai botasse uma viola nas costas e ganhasse o “oco do mundo”, como se dizia na época, longe de suas vistas e de sua proteção paternal. 

Em 1978 eu tinha entre 10 e 11 anos de idade, quando meu pai apareceu com uma grande novidade: um livro que marcou profundamente a minha infância e se tornou companheiro inseparável da nossa família até os dias de hoje. Era o Poetas Populares e Cantadores do Ceará, de Alberto Porfírio (Horizonte Editora, 1978), poeta que eu já conhecia de nome e de versos. As rádios costumavam divulgar seus escritos, sobretudo os poemas matutos “A estátua do Jorge” e “Cantiga da Dourinha”, que faziam sucesso na voz do saudoso radialista Guajará Cialdini, fã do poeta e divulgador incansável de sua obra. Outro poema de grande sucesso tinha o curioso título de "Eu gostei mais foi do Cão" e conta a história de um matuto que foi vítima de traição e levou seu único filho, ainda bebê, para ser criado nos matos, para que nunca na vida visse uma mulher!

Guajará declamava com encanto e desembaraço, fazendo com que nos tornássemos, cada vez mais, admiradores da lira maviosa do mestre Porfírio. O escritor Luciano Barreira, autor de Os cassacos, referindo-se à primeira parte de Poetas Populares e Cantadores do Ceará diz que a mesma “é composta de criações poéticas moldadas na simplicidade e na grandeza da poesia mais pura, essa que brota quase sempre de improviso, à sombra do alpendre ou da latada sertaneja. Versos cheios de lirismo e ao mesmo tempo de lições de elevado cunho humano”. 

Esse livro, de pouco menos de 150 páginas, é uma obra essencial para todos que amam a poesia popular. Além de apresentar uma série de poemas matutos da lavra do autor, traz ainda dados biográficos de vários cantadores e saborosos fragmentos de cantorias realizadas por outros poetas cearenses.

A seguir trechos do poema EU GOSTEI MAIS FOI DO CÃO:


EU GOSTEI MAIS FOI DO CÃO
Poema matuto de Alberto Porfírio

Já faz mais de doze anos
Qui eu me intriguei com muié
Pois o que a minha me fez
Véve com ela outra vez
Quem vergonha num tivé.

Agarrei meu fio Zé
E entrei pros mato com ele
Pois quero que ele se crie
Sem cunhincê a mãe dele.

A gente véve nas mata
Plantando e fazendo roça
Quando eu saio pro trabaio
Ele fica na paioça
Dando di cumê aos bicho
Fazendo a comida nossa.

De tempo em tempo
Pra cidade do Coité*
A fim de compra o fumo
A farinha e o café
Mais eu vou mermo sozinho
Em casa eu deixo o Zé
Pois quero que ele se crie
Sem vê diabo de muié!

Doutô, a minha muié,
Era Maria Chiquinha,
Cumo eu era só dela
Pensei que fosse só minha
Mas ela num tinha amô
Do jeito que eu lhe tinha.

(...)

Um dia, lá numa festa
Um sujeitim atrevido
Chegou e perguntô a ela
Se eu era o seu marido
E ela respondeu baixim:
- Ele é só meu cunhicido!

Qui cunhicido, que nada,
Agarrei no braço dela,
Tangi logo ela pra casa
Dei um bom ensino a ela
E ainda amiacei
De entregá-la ao pai dela.

Mais tombém essa muié
Mim pediu tanto perdão
Jueiada nos meus pés
Cuma quem faz oração
Qui inté que eu dixe pra ela:
- Num qué dizer nada não!...

Num faça mais ôta dessas
Qui tá tudo perdoado;
No ôto dia bem cedo
Fui trabaiá no roçado,
Cheguei em casa mei-dia
Cum fome e munto cansado
Ui! Seu dotô, pois estava,
Meu rancho desocupado...

Tinha ela deixado o Zé
Dento da rede, incuído
E tinha ido simbora
Cum aquele mermo enxerido
Que ela dixe, em minha frente,
Qui eu num era o seu marido.

Foi aí qui eu cunhicí
Que as muié tem mandinga,
Quando a gente qué dá nelas
Elas geme e churuminga
Mais dento do coração
É dizendo que se vinga!

Tá vendo, que muié ruim?
Deixou um fio inocente
Cum oito meses de idade
Sozinho, e cum eu ausente,
Pra ir simbora com um cabra
Um malandro, certamente,
Só pruquê tinha gravata
E tinha ouro nos dente.

Por isso é que hoje im dia
Eu indo à povoação
Num entro numa bodega
Qui tem muié no barcão
Eu fasto logo prá trás
Arrodeio o quarteirão
Por causa dela eu penso
Qui todas fazem treição!


(...)