Antiga estampa do padroeiro de Canindé
NOTAS FOLCLÓRICAS SOBRE OS FESTEJOS DE SÃO FRANCISCO DE CANINDÉ
Santuário de São Francisco
O poeta, prosador e
jornalista José da Cruz Filho (foto ao lado),
nascido em Canindé, aos 16 de outubro de 1884 – e falecido em Fortaleza, a 24
de agosto de 1974, foi príncipe dos poetas cearenses, e membro da Academia
Cearense de Letras. Como jornalista, fundou o primeiro jornal que circulou em sua
terra natal (O Canindé, de 1903) e colaborou em outros que surgiram
posteriormente. Num artigo extraído do jornal A IMPRENSA, do qual foi redator, temos
um curioso artigo onde o poeta se diz “folclorista”.
As oficinas gráficas do
Convento de Canindé-CE lançaram, a 22 de junho de 1913, um semanário chamado A
IMPRENSA, mantido pela Casa de São Francisco e redigido pelo poeta Cruz Filho. A direção do
estabelecimento tipográfico naquele tempo coube a Tomás Barbosa. Apareceram ao
todo trinta números deste órgão, até 11 de janeiro de 1914. No livro “São
Francisco das Chagas de Canindé” Frei Venâncio Willeke destaca um artigo
publicado num dos números daquele semanário, possivelmente escrito por Cruz
Filho, seu principal redator. Eis a transcrição de um artigo da IMPRENSA de
4-10-1913 referindo-se aos cantadores cegos ou aleijados que esmolavam durante
os festejos do padroeiro de Canindé:
“NOTAS FUGACES”
Ele veio de longe, dos sertões altos
de S. João do Rio do Peixe, no Estado da Paraíba do Norte... Apoiado às muletas
frágeis, vencendo as areias ardentes, transpondo as duras charnecas, com uma
imensa desventura nos olhos tristes e uma radiosa esperança no coração, viu,
numa clara manhã de alegre sol, brancas e fulgindo no azul, as torres prestigiosas
de São Francisco de Canindé.
Fugira o aleijadinho às mãos sábias
dos médicos, que lhe quiseram amputar a perna chagada, num hospital do Recife,
e viera, vingando as ásperas charnecas, sentar-se à sombra magnânima do templo
prestigioso e unir a sua voz, numa ardente súplica rimada à confusa voz de
outros náufragos da vida, – cegos, leprosos e aleijados – que a mesma ingrata
vaga dos negros destinos humanos lançara e fraternizara nos mesmos estreitos
palmos de terra. E ali no burburinho tumultuoso dos pregões festivos, no
profuso rumor das multidões complexas, implorando a caridade das turbas
felizes, o bando sinistro dos desgraçados, para quem a vasta noite da vida não
tem esperança de aurora, procura chamar a atenção indiferente dos ditosos e
estranhos para a sua imensa desventura sem remédio...
A festa de São Francisco de Canindé
reúne a mais variada coleção de tipos sociais. São vastas ondas humanas que
afluem, sôfregas, a presenciar os festejos celebérrimos do grande Santo dos
doces milagres.
E o folclorista, curioso e
deslumbrado, vê abrir-se ante os seus pasmos olhos de psicólogo amador uma
estranha flora da emoção do vago sentimento da rude alma popular. E‟ a parte
dolorosa da poesia do povo. São rudes almas de poetas que dizem cantando a sua imensa
desdita. Ponteando os brados alegres, surtem como tristes ais doloridos, essas
vozes mendigas de desgraçados sem lar que cantam e que imploram:
Meu
irmão me dê uma esmola,
Que
eu lhe peço, é por amor
Pelo
cálice, pela hóstia
Que
hoje se levantou! . . .
E as multidões param assombradas,
diante desses poetas maltrapilhos, e as moedas caem sonoras nas bacias
minúsculas de folha de flandres, acompanhadas pela aflita voz implorativa que
agradece em ingênuas rimas sinceríssimas:
A
quem me deu sua esmola,
Deus
acrescente seu bem;
Que
de um produza dez,
Que
de dez produza cem...
Poeta Bentevi Neto
Cantadores se apresentavam nessas barracas, construídas no leito do Rio Canindé
Vai
nessas rimas toda a psicologia desses simples, toda a sua arte de mover, com as
angustiadas estrofes, o duro coração humano:
Quando
Deus andou no mundo,
A
São Pedro disse assim:
Quem
não quer pobre na porta,
Também
não me quer a Mim...
A
luta amarga pela vida lhes ensinou, a eles, que nunca viveram os caminhos amáveis
do coração e os meios ardilosos de prender e comover a fugitiva caridade das turbas:
Meus
irmãos, me deem uma esmola,
Por
Jesus de Nazaré,
Por
São Francisco das Chagas,
Padroeiro
do Canindé...
E
ele, esse poeta de treze anos que viera pelos duros caminhos sertanejos, das
longes terras da Paraíba do Norte, erguia também, no confuso tumulto das
cantigas trêmulas, a sua fina voz de criança, dizendo toda a infinita amargura
da sua triste primaveras sem botões:
Meus
irmãos, me deem uma esmola,
E
queiram me proteger,
Que
eu perdi minha saúde,
Não
tenho mais que perder...
Perdi
os gostos da vida;
Vivo
triste até morrer...
Aquela
voz de mendigo justificava perante a desatenta caridade humana o seu amargurado
e angustioso pedido em versos ingenuamente impressionadores:
Meus
irmãos, me deem uma esmola;
Tenham
dó do meu penar
Que
eu perdi minha saúde,
Não
posso mais trabalhar.
Se
eu tivesse minha saúde,
Como
todos têm a sua,
Não
ia de porta em porta,
Pedindo
esmola na rua,
Comendo
fora de horas...
Ai
meu Deus, que sorte crua!...
E as
moedas, os níqueis, os cobres caíam, choviam na bacia de folhas de flandres estendida
à caridade dos transeuntes e, de novo, a triste voz magoada se elevava, sonora
e agradecida:
A
quem me deu sua esmola,
Deus
o leve num andor,
Acompanhado
de anjos,
Circulado
de fulô...
Nossa
Senhora o proteja
Quando
deste mundo for...
“É
uma vasta classe, digna do estudo de um amador perspicaz, essa classe dos mendigos
– possuindo o seu argot particular, mantendo a sua solidariedade, também a sua rivalidade
feroz de oficiais do mesmo ofício”.
In WILLEKE, Frei
Venâncio - São Francisco das Chagas de Canindé, Editora Vozes, 1973
Arievaldo,
ResponderExcluirInteressantíssimo registro. São raros. Poucos se ocupavam dos excluídos. Sensível poeta/jornalista e o frade que organizou a coletânea. Obrigado pela postagem no seu blog. Oportuna.