quinta-feira, 25 de julho de 2019

MENDIGOS TROVADORES


Antiga estampa do padroeiro de Canindé

NOTAS FOLCLÓRICAS SOBRE OS FESTEJOS DE SÃO FRANCISCO DE CANINDÉ


Santuário de São Francisco


O poeta, prosador e jornalista José da Cruz Filho (foto ao lado), nascido em Canindé, aos 16 de outubro de 1884 – e falecido em Fortaleza, a 24 de agosto de 1974, foi príncipe dos poetas cearenses, e membro da Academia Cearense de Letras. Como jornalista, fundou o primeiro jornal que circulou em sua terra natal (O Canindé, de 1903) e colaborou em outros que surgiram posteriormente. Num artigo extraído do jornal A IMPRENSA, do qual foi redator, temos um curioso artigo onde o poeta se diz “folclorista”.

As oficinas gráficas do Convento de Canindé-CE lançaram, a 22 de junho de 1913, um semanário chamado A IMPRENSA, mantido pela Casa de São Francisco e redigido pelo poeta Cruz Filho. A direção do estabelecimento tipográfico naquele tempo coube a Tomás Barbosa. Apareceram ao todo trinta números deste órgão, até 11 de janeiro de 1914. No livro “São Francisco das Chagas de Canindé” Frei Venâncio Willeke destaca um artigo publicado num dos números daquele semanário, possivelmente escrito por Cruz Filho, seu principal redator. Eis a transcrição de um artigo da IMPRENSA de 4-10-1913 referindo-se aos cantadores cegos ou aleijados que esmolavam durante os festejos do padroeiro de Canindé:

“NOTAS FUGACES”

Ele veio de longe, dos sertões altos de S. João do Rio do Peixe, no Estado da Paraíba do Norte... Apoiado às muletas frágeis, vencendo as areias ardentes, transpondo as duras charnecas, com uma imensa desventura nos olhos tristes e uma radiosa esperança no coração, viu, numa clara manhã de alegre sol, brancas e fulgindo no azul, as torres prestigiosas de São Francisco de Canindé.
Fugira o aleijadinho às mãos sábias dos médicos, que lhe quiseram amputar a perna chagada, num hospital do Recife, e viera, vingando as ásperas charnecas, sentar-se à sombra magnânima do templo prestigioso e unir a sua voz, numa ardente súplica rimada à confusa voz de outros náufragos da vida, – cegos, leprosos e aleijados – que a mesma ingrata vaga dos negros destinos humanos lançara e fraternizara nos mesmos estreitos palmos de terra. E ali no burburinho tumultuoso dos pregões festivos, no profuso rumor das multidões complexas, implorando a caridade das turbas felizes, o bando sinistro dos desgraçados, para quem a vasta noite da vida não tem esperança de aurora, procura chamar a atenção indiferente dos ditosos e estranhos para a sua imensa desventura sem remédio...
A festa de São Francisco de Canindé reúne a mais variada coleção de tipos sociais. São vastas ondas humanas que afluem, sôfregas, a presenciar os festejos celebérrimos do grande Santo dos doces milagres.
E o folclorista, curioso e deslumbrado, vê abrir-se ante os seus pasmos olhos de psicólogo amador uma estranha flora da emoção do vago sentimento da rude alma popular. E‟ a parte dolorosa da poesia do povo. São rudes almas de poetas que dizem cantando a sua imensa desdita. Ponteando os brados alegres, surtem como tristes ais doloridos, essas vozes mendigas de desgraçados sem lar que cantam e que imploram:

Meu irmão me dê uma esmola,
Que eu lhe peço, é por amor
Pelo cálice, pela hóstia
Que hoje se levantou! . . .

E as multidões param assombradas, diante desses poetas maltrapilhos, e as moedas caem sonoras nas bacias minúsculas de folha de flandres, acompanhadas pela aflita voz implorativa que agradece em ingênuas rimas sinceríssimas:

A quem me deu sua esmola,
Deus acrescente seu bem;
Que de um produza dez,
Que de dez produza cem...


Poeta Bentevi Neto


Cantadores se apresentavam nessas barracas, construídas no leito do Rio Canindé


Vai nessas rimas toda a psicologia desses simples, toda a sua arte de mover, com as angustiadas estrofes, o duro coração humano:

Quando Deus andou no mundo,
A São Pedro disse assim:
Quem não quer pobre na porta,
Também não me quer a Mim...

A luta amarga pela vida lhes ensinou, a eles, que nunca viveram os caminhos amáveis do coração e os meios ardilosos de prender e comover a fugitiva caridade das turbas:

Meus irmãos, me deem uma esmola,
Por Jesus de Nazaré,
Por São Francisco das Chagas,
Padroeiro do Canindé...

E ele, esse poeta de treze anos que viera pelos duros caminhos sertanejos, das longes terras da Paraíba do Norte, erguia também, no confuso tumulto das cantigas trêmulas, a sua fina voz de criança, dizendo toda a infinita amargura da sua triste primaveras sem botões:

Meus irmãos, me deem uma esmola,
E queiram me proteger,
Que eu perdi minha saúde,
Não tenho mais que perder...
Perdi os gostos da vida;
Vivo triste até morrer...

Aquela voz de mendigo justificava perante a desatenta caridade humana o seu amargurado e angustioso pedido em versos ingenuamente impressionadores:

Meus irmãos, me deem uma esmola;
Tenham dó do meu penar
Que eu perdi minha saúde,
Não posso mais trabalhar.

Se eu tivesse minha saúde,
Como todos têm a sua,
Não ia de porta em porta,
Pedindo esmola na rua,
Comendo fora de horas...
Ai meu Deus, que sorte crua!...

E as moedas, os níqueis, os cobres caíam, choviam na bacia de folhas de flandres estendida à caridade dos transeuntes e, de novo, a triste voz magoada se elevava, sonora e agradecida:

A quem me deu sua esmola,
Deus o leve num andor,
Acompanhado de anjos,
Circulado de fulô...
Nossa Senhora o proteja
Quando deste mundo for...

“É uma vasta classe, digna do estudo de um amador perspicaz, essa classe dos mendigos – possuindo o seu argot particular, mantendo a sua solidariedade, também a sua rivalidade feroz de oficiais do mesmo ofício”.

In WILLEKE, Frei Venâncio - São Francisco das Chagas de Canindé, Editora Vozes, 1973

Um comentário:

  1. Arievaldo,

    Interessantíssimo registro. São raros. Poucos se ocupavam dos excluídos. Sensível poeta/jornalista e o frade que organizou a coletânea. Obrigado pela postagem no seu blog. Oportuna.

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