Poeta Bentevi
Neto fotografado em Canindé-CE
Amigo José Tinoco
Eu ainda faço glosa
Sou repentista da prosa
Que nunca ficou no toco
Sou glosador de papôco
Já glosei com mais de cem!
Dos poetas que aqui vêm
Pra derribar meu projeto
Encontrei Bentevi Neto,
Daí pra cá mais ninguém.
(Glosa do poeta Roque Machado, recolhida por Alberto Porfírio)
BENTEVI
NETO, um glosador do “papôco”
Quarto
ou quinto violeiro da famosa dinastia dos Bentevis da Paraíba, Severino
Mendonça da Silva*, o Bentevi Neto (ou Bem-te-vi, como preferem alguns), nasceu
em Patos-PB, no dia 11 de março de 1922, mas fez fama como glosador no Sertão
Central do Ceará e Maciço de Baturité. Faleceu no dia 05 de julho de 1959, em
Água Verde, distrito de Pacatuba, vítima de um acidente de caminhão. O poeta
havia conseguido uma carona num caminhão carregado de frutas, que vinha de
Baturité para Fortaleza. Na ponte da Água Verde, o carro virou devido um
cochilo do motorista. Dizem que de boas intenções o inferno está cheio...
Bentevi ficou soterrado sob as frutas e o ajudante do carro, pensando em
socorrê-lo, riscou um fósforo, porque ainda estava escuro. O resultado é que o
carro incendiou imediatamente e o pobre cantador morreu carbonizado.
Eis o pássaro que emprestou o nome ao genial glosador
O LEGADO DO POETA
Quando
criança, ouvi muitas glosas atribuídas ao Bentevi. Meu pai toda vida gostou de
cantoria e quando se juntava com o amigo Chico Cazuza, um fã do poeta, pedia
sempre para que ele recitasse alguns versos do grande cantador. Esses versos
corriam de boca em boca, no meio daquela gente simples e semi-analfabeta, porém
foram preservados ao longo do tempo. Contam que certa feita ele cantava em São
José da Macaóca (distrito de Quixeramobim), na casa do mestre Mário Victor,
quando fez um gesto muito comum nos grandes cantadores, ergueu a cabeça a fitar
as telhas em busca de uma rima. Já havia feito os dois primeiros versos:
O
Bentevi quando canta
O
seu cantar é exato...
Ergue
a cabeça para inspirar-se e eis que passa um gato correndo pela meia parede.
Foi o suficiente para completar magistralmente a estrofe:
...
Valha-me Nossa Senhora
Que
alí vai passando um gato
Mas
ele morre e não come
Um
Bentevi de sapato!
Dizem
os apologistas que guardam carinhosamente algumas pérolas da sua produção
poética no cofre da memória, que de outra feita o poeta cantava num salão onde
estavam dois cachorros, bem do seu lado. De repente aparece um gato e o poeta
improvisa:
Estou
muito satisfeito
Cantar
nesta sala aqui
De
um lado está Tubarão
Do
outro lado o Joli
Os
cães espantaram o gato
Pra
não pegar Bentevi.
Um
belo dia juntaram-se 12 cantadores em Baturité. João Siqueira do Amorim
liderava o grupo e o Dr. Saraiva Leão pagava a despesa dos poetas, quando
surgiu a melhor estrofe, feita pelo Bentevi:
Somos
doze cantadores
Aqui
no quadro da feira,
Imitando
os doze apóstolos,
Com
Jesus na cabeceira.
O
Cristo é o doutor Saraiva
E
Judas é João Siqueira.
De
outra feita Bentevi encontrava-se numa barbearia na localidade de Pirangi,
distrito de Ibaretama-CE, cujo proprietário tinha o apelido de Gavião. Nesse
momento chegou um velho conhecido de ambos, apelidado Marreco, que entrou na
barbearia fumando um cigarro e propôs ao Bentevi fazer uma glosa sobre o
encontro. O poeta temperou a garganta e respondeu de chofre:
Vi
um touro jejuar
Sexta-feira
da Paixão
Macaco
fazer sermão,
Vi
pulga se confessar,
Vi
cobra dar de mamar
Ao
filho de um juriti
E
agora, no Pirangi,
Vi
um Marreco fumando
E
um Gavião tirando
A
barba dum Bentevi.
O
poeta gostava de descrever a natureza e tinha paixão pela fauna, não esquecendo
sequer o humilde e desprezado cururu:
Não
é alto; é baixo e grosso;
É
redondo, curto e chato,
Gosta
muito de regato,
Mora
na beira do poço,
Canta
desde sapo moço;
Seu
cantar é uma certeza,
Procurando
a correnteza,
Banhando
o seu corpo nu
Quero
bem ao cururu
Profeta
da Natureza.
O
inspirado glosador viajava de trem de Itapiúna a Caio Prado quando presenciou
uma cena bastante desumana. Um homem de CANGATI levava um saco cheio de
gatinhos para soltar num local deserto. Bentevi, amante dos animais e da
natureza, saiu-se com esta:
Há
inverno em todo Estado
Só
não chove em Cangati
Porque
o povo dali
É
todo amaldiçoado
A
nuvem do Caio Prado
Passa
por cima e some
Tudo
por causa dum "home"
Que
mandou botar no mato
Um
saco cheio de gato
Pra
morrer de sede e fome.
Cantando
numa emissora de rádio com o poeta José Mota Pinheiro, Bentevi percebeu a
chegada de dois colegas: Lourival Bandeira Lima e Lourival Batista. Zé Mota
quis ufanar-se terminando uma estrofe cheia de bazófia:
Eu
sou Zé Mota Pinheiro,
Um
campeão do repente.
Pegando
na deixa, Bentevi fulminou-o dessa maneira:
Bentevi
Neto, somente,
Nome
que o jornal adota;
Lourival
Bandeira Lima
E
Lourival Patriota.
Onde
cantam esses três homens
Não
se fala em José Mota.
Segundo
nos informou o poeta José Maria de Fortaleza, o principal parceiro de Bentevi
era o cantador Nogueira (ou Nogueirão, como era mais conhecido pelos colegas). Certa
feita os dois foram cantar em Aracoiaba e andavam pela rua, quando o Nogueira
resolveu entrar numa barbearia para cortar o cabelo. Bentevi seguiu adiante e
entrou numa bodega, onde foram logo lhe perguntando: — Bentevi, cadê Nogueira? O poeta,
percebendo que a pergunta era metrificada em sete sílabas respondeu em cima da
bucha:
— Bentevi, cadê Nogueira?...
— Lhe respondo em poesia
Ficou
na barbearia
Derrubando
a cabeleira;
Com
a tesoura cortadeira
Cabelo
cai de magote,
E a
navalha no cangote
Tirando
o resto do friso,
Deixando
o pescoço liso
Que
só pau de cabeçote!
Numa
cantoria na localidade de Três Irmãos (Canindé) nome proveniente de um serrote
formado por três gigantescos monólitos praticamente iguais, Bentevi admirou-se
da indumentária de um garotinho, que ali se encontrava em trajes mal
amanhados...
A
calça deste garoto
Parece
que está perdida
Foi
esta a roupa mais feia
Que
eu já vi na minha vida
Pra
ser comprida está curta
Pra
ser curta está comprida.
Outra
glosa famosíssima atribuída a Bentevi, que me foi recitada pelo cantador Pedro
Evangelista, questiona a Criação do Homem:
Diz
a Sagrada Escritura
Que
Adão foi feito de barro
Mas
essa história eu não narro
Porque
é mentira pura
Ainda
tem gente que jura
Que
isso tudo foi passado...
Deus
é um Santo Sagrado,
Ele
nunca foi “loiceiro”
Pra
estar dentro dum barreiro
Fazendo
cabra safado.
Cantando
com Lourival Bandeira Lima, nos festejos de São Francisco das Chagas, em
Canindé-CE, o parceiro disse que ia tomar uma cana e tirar o gosto com caju. Os
poetas ficavam geralmente em latadas de palha, construídas no leito do rio
Canindé, onde se vendia bolo, café, refeições e bebidas alcoólicas,
principalmente a cachaça. Bentevi, que também gostava de tomar um trago, glosou
de imediato:
Tanto
faz chamar caju
Como
se chamar jucá;
É cê-a-ca,
jota-u-ju
É
jota-u-ju, cê-a-cá;
Trocando
o pau pelo fruto
Caju
pra cá, pau pra lá.
Festejos de Canindé na década de 1940
Ainda
em Canindé, o poeta teria glosado essa estrofe, em linguagem matuta,
pronunciando “Rie” no lugar de RIO e “mie”, em vez de MILHO, como é muito comum
entre os sertanejos. Eis a sextilha:
O
Bentevi quando canta
Dentro
do leito do RIE
Parece
trinta macacos
Em
um roçado de MIE
Dezoito
quebram na frente
Doze
atrás fazendo ATIE.
Fazer
atilho é o ato de amarrar a palha das espigas de milho umas nas outras para
facilitar o seu transporte. Os macacos são mestres nessa arrumação.
HOMENAGENS PÓSTUMAS
HOMENAGENS PÓSTUMAS
Falando
de seu conterrâneo Moysés Lopes Sesyom, no IV Volume do Livro das Velhas Figuras, o grande folclorista potiguar Luís da
Câmara Cascudo disse que os seus versos magistrais “estão mais seguros na
retentiva popular do que nas páginas de um folheto. Mas essa impressão
garantiria a pureza da produção humilde, impossibilitando as deturpações
vindouras, instaladas no texto como letra integral.” Foi com essa intenção que
os colegas violeiros da SOVIBRIL (Sociedade dos Cantadores, Violeiros e Poetas
Populares do Brasil), fundada em 27 de outubro de 1974, publicaram um folheto
de 16 páginas intitulado “Vida e Morte de Severino Mendonça da Silva, vulgo
Bentevi Neto” fazendo o necrológio do poeta e apresentando uma coletânea de
suas glosas mais inspiradas, muitas das quais viriam a ser reunidas
posteriormente na famosa Antologia
Ilustrada dos Cantadores, de Francisco Linhares e Otacílio Batista. Nesta pequena
crônica, conseguimos reunir também algumas estrofes dispersas recolhidas por
seus admiradores dos sertões de Canindé e Quixeramobim. Gente anônima que
conheci na infância, trabalhadores rurais que guardavam de memória as estrofes
felizes do grande glosador paraibano.
Capa do folheto de Minelvino Francisco Silva
Também
o poeta popular baiano Minelvino Francisco Silva, “o trovador apóstolo”
publicou um folheto de 8 páginas intitulado “Homenagem póstuma ao violeiro
Bentevi Neto”, com bela xilogravura retratando o poeta defronte uma igreja. É
justamente esse folheto de Minelvino que informa as datas de nascimento e morte
de Severino Mendonça da Silva. Vejamos:
No
dia 11 de março
Este
poeta nasceu
Em
Patos, na Paraíba,
O berço
querido seu
No
ano de 22 (1922)
Conforme
Deus concedeu.
Manoel
da Silva Mendonça
E dona
Rita Crispim
Foram
os pais de Severino
De
inteligência sem fim
No
assunto da poesia
Por
ordem de Eloim.
O seu
avô era um homem
Sincero
e muito correto
Tinha
o vulgo Bentevi
Cantador
mesmo dileto,
Por
isso é que Severino
Chamavam
Bentevi Neto.
(...)
No
ano 59 (1959)
Um
desastre aconteceu
No
dia 5 de julho
Bentevi
Neto morreu
Na
ponte de Água Verde
Esse
desastre se deu.
Porque
ele viajava
Fazendo
a sua defesa
Cantando
aqui, acolá,
Por
aquela redondeza
Vinha
de Baturité
Seguindo
pra Fortaleza.
O poeta
descreve dessa maneira os momentos trágicos da morte do grande cantador, após a
virada do caminhão na ponte de Água Verde:
Ainda
estava muito escuro
O ajudante
saltou
Pra
socorrer Bentevi
Um
fósforo logo riscou;
Mas
com a explosão do fósforo
Todo
carro incendiou.
Ali
não teve mais jeito
Todo
carro incendiado
Bentevi
Neto que estava
Debaixo
dele, imprensado,
Foi
pra terra da verdade
Além
de morto, queimado.
No
ano 76 (1976)
Seu
Murilo Evangelista
Fez
uma bela promessa
Com
a alma do repentista
Que
morreu ali queimado
Na
ponte, fora da pista.
E sendo
vitorioso
Por
ordem do Salvador
Resolveu
ir ao local
Desse
desastre de horror
E mandou
rezar uma missa
Pra
alma do cantador.
A Murilo
Evangelista
Jesus
lhe deu um bom tino
Pra
reunir os poetas
Homem,
mulher e menino,
E construir
uma capela
Ali,
pra São Severino.
(Silva,
Minelvino Francisco da. Homenagem póstuma
ao violeiro Bentevi Neto)
Segundo
o poeta Zé Maria de Fortaleza, ao que parece, a construção dessa igrejinha no
local da tragédia jamais se concretizou, embora poetas como Cezanildo Lima
tenham envidado todos os esforços para que o projeto fosse adiante.
O
poeta potiguar Eliseu Ventania, o ‘Rei da Canção’, foi um de seus parceiros e
se dizia influenciado pelo grande poeta paraibano. Em sua última entrevista
concedida à imprensa, para o jornal O Mossoroense, em 27 de setembro de 1998,
falou da influência que outros violeiros tiveram para a sua decisão pela
cantoria. “O que me impulsionou foi o chamado de outros violeiros, como João
Liberalino, Adonias Ferreira, entre outros. Aos 18 anos, eu fui para Fortaleza,
no Ceará, e lá fiz parceria com alguns violeiros. Anos depois tive como
parceiros João Liberalino, Adonias Ferreira, Raimundo Mourão, Bentivi Neto,
Patativa, Chico Traíra e muitos outros", relatou à época.
Arievaldo Vianna
* Na Antologia Ilustrada dos Cantadores, de
Otacílio Batista e Francisco Linhares, o nome do poeta é dado como Severino
Mendes de Queiróz.