"Se vocês querem poesia de verdade, entrem no povo, passem uma noite por aí, por esses rincões, à beira do fogo, entre violeiros, ouvindo trovas de desafios. Chamem um cantador sertanejo, um desses caboclos distorcidos, de alpercatas e chapéu de couro, e peçam-lhe uma cantiga. Então, sim!" (palavras de Sílvio Romero no discurso de recepção de Osório Duque Estrada na Academia Brasileira de Letras).
Os "cantadores" são uma característica do Nordeste. Poetas populares, perambulam pelos sertões cantando seus próprios versos (ou de terceiros), acompanhando-se à viola ou à rabeca. Curioso é que encontram sempre auditório numeroso e interessado — desejoso de assistir aos famosos "desafios" em que cada um procura, pela sua inteligência, vivacidade e senso de improvisação, sobrepujar o adversário.
Sem dúvida é o "desafio" que consolida a reputação do cantador. Utilizando a sextilha, o poeta popular quase sempre é de ironia contundente. Como o improviso pode durar horas intermináveis, nesses casos o remédio para evitar a monotonia dos torneios é o cantador entoar seus versos em ritmo especial. Em verdade eles constituem autênticos comentaristas da nossa vida primitiva.
Em suas andanças pelo Nordeste, recolhendo material folclórico dos mais variados poetas populares, Leonardo Mota (1891-1948) conseguiu juntar um farto material que transformou em livros, numa admirada homenagem à sabedoria humilde e à filosofia toda pessoal dos cantadores. Sua dedicação era tanta que, certa feita, um repentista paraibano lhe disse depois de um acirrado torneio em que sobrepujara todos os adversários e do qual Leonardo Mota tomara apontamentos taquigráficos: "Bem se diz nesse mundo, sinhô doutô, que tem gente prá tudo e inda sobra. Ora, vossenhoria — um doutô! — pra quê avera de dá! Prá juntar as besteiras que a gente canta e andá fazendo discursos com elas".
Leonardo Mota, que foi um apaixonado pesquisador dos cantadores que produzem prosa sertaneja, estudou-os em sua intimidade, em seu próprio ambiente, convivendo com eles de igual para igual. Nessas ocasiões ele não representava o advogado, o jornalista, o secretário do governador do estado. Era, antes de tudo, um amigo que tratava de viver em contato com aquela gente humilde, esquecido dos títulos e de sua condição social.
Foi Leonardo Mota quem, com a sua autoridade, no livro intitulado Cantadores, apontou os por ele considerados como os mais expressivos, naturais e completos improvisadores da poesia do sertão: Anselmo, Passarinho, Sinfrônio e Aderaldo. Os dois últimos eram cegos e tocadores de rabeca. Manejavam o instrumento como os menestréis medievais, ou seja, colocavam-no à altura do peito e não sob o queixo. Os dois primeiros eram violeiros, mas todos tinham muitas características em comum, inclusive uma memória extraodinária.
Anselmo, por exemplo, foi o mais famoso vate matuto da região do norte do Ceará e alegava jamais haver vivido do "ufiço", com o que queria dizer que não levava a vida nômade dos cantadores de profissão. Analfabeto, sempre fez versos influenciados pelos desafios e cantigas que ouvira em sua meninice, quando os poetas sertanejos de então passavam pelo lugar onde ele morava. Alguns dos seus versos característicos:
Tem duas coisa no mundo Que eu nunca pude entendê; É pade i pro inferno, Outra é doutô morrê.
Avoa, meu caboré, Penera, meu gavião, Palmatora quebra dedo, Palmatora faz vergão, Quebra os ossos e quebra a carne Mas não quebra opinião!...
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Preu cantá na sua casa, Meu patrão, me dê licença! Se a cantiga não fô boa, Desculpe, vossa incelença Que, às vez, as coisa não sai Do jeito que a gente pensa.
Não tem outro cantadô Pra me ajudá um tiquim. O cantá de dois é bom, O ruim é cantá sozim; A gente, andando de dois Encurta mais os camim...
Passarinho é outro da lista dos "grandes". Seu nome de guerra: Jacó Passarinho. Cearense de Mutamba, localidade perto de Aracati, sua maior glória era saber ler e escrever. Ágil repentista, memória terrível, tinha uma deficiência: não ser exímio tocador de viola. Mas isso ficava esquecido quando cantava versos assim:
De amor a gente não muda. De ano em ano, mês em mês! Amor é que nem bexiga: Só dá na gente uma vez...
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Cantador que dá-se a preço Não se areia nem faz troça: Sujeito de bom calibre Depois de velho remoça;
Quem beija a boca de um filho A boca de um pai adoça.
Nossa Senhora é mãe nossa, Jesus Cristo é nosso pai Na minha boca repente É tanto que sobra e cai... Quem beija a boca de um filho Adoça a boca de um pai
Mostro a quem vem e a quem vai, Mostro a todos da jornada: Mais vale quem Deus ajuda Do que quem faz madrugada. Quem beija a boca de um filho Deixa a de um pai adoçada.
Este mundo é uma charada... Ai de mim, se Deus não fosse! Repente em minha cabeça Ainda não acabou-se: Quem beija a boca de um filho Deixa a boca de um pai doce.
Foi o inverno quem trouxe Ao Ceará a fartura. Eu, em casa de homem rico, Gosto de fazer figura... Quem beija a boca de um filho Deixa a de um pai com doçura.
O cego Sinfrônio, natural de Jabuti, perto de Messejana, pode ser considerado como um dos cantadores mais espontâneos do Nordeste.
Cegou quando tinha apenas um ano de idade e, apesar disso, devido a sua extraordinária memória, tornou-se um verdadeiro cabedal de romances, cantigas e desafios. Sua mulher lia pacientemente os manuscritos e folhetos até que ele os conseguisse decorar. Sua maior qualidade: ser maravilhoso improvisador. Nômade por natureza, admirável profissional do canto. Sinfrônio foi o tipo do cantador reconhecidamente respeitado por todos os demais. Uma filosofia pessoal marcava toda a inspiração do cego Sinfrônio:
Anda já em quarenta ano Que eu vivo somente disso... Achando quem me proteja. Eu sou bom nesse serviço: Eu faço a vez de machado Em tronco de pau mucisso...
Esta minha rabequinha É meus pés e minhas mão, Minha foice e meu machado, É meu mio e meu feijão, É minha planta de fumo, Minha safra de algodão...
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Eu andei de déu em déu E desci de gaio em gaio... Jota a Já, queira ou não queira, Eu não gosto é de trabaio... Por três coisa eu sou perdido Muié, cavalo e baraio!
Aderaldo foi, sem dúvida, o cantador de melhor voz, entre os quatro mais famosos, e além disso possuía uma apreciável veia poética. Natural do Crato, no Ceará, cegou aos 18 anos, quando maquinista num desastre ferroviário que sofreu sua composição na Estrada de Ferro Baturité. Ao contrário de Sinfrônio, que não gosta de versos de amor, Aderaldo é um lírico. Em todos os seus "desafios" não deixa de lado o seu sentimentalismo:
Meu benzinho, diga, diga, Por caridade confesse Se você já encontrou Quem tanto bem lhe quisesse.
Meu bem, que mudança é esta Neste teu rosto adorado? Acabou-se aquele agrado Com que me fazia festa?
Eu juro que nunca quis Ofender teu peito nobre! Fala, meu anjo, descobre. Diga, meu bem, que te fiz?
Todo passarinho canta Quando vem rompendo a aurora; Só a pobre mãe da lua Quando canta — logo chora... Assim eu faço também, Quando meu bem vai se embora! |
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