Cego Aderaldo, o mais lírico violeiro
e
cantador do Brasil
J. Lindemberg de Aquino
Cem anos já são passados do nascimento do mais famoso dos poetas
cantadores e violeiros do Nordeste (o
centenário do Cego aconteceu em 1978 – este artigo é de 1977), o Cego
Aderaldo. Cearense do Crato, teve por berço o cenário emoldurado de verdes e
azuis da Serra do Araripe o cascatear de fontes e regatos cristalinos e a terra
histórica, de mártires e de heróis.
Poeta e repentista, o verso saia-lhe natural, rude, rústico e
espontâneo, seja a entoar louvores ou a ferrotear os adversários dos
incansáveis desafios sertanejos, seja em epigramas vorazes contra os que lhe
testavam a argúcia e a inteligência, seja na exaltação das belezas da terra,
dos sentimentos diversos ou nos repentes gozados, humorísticos, galhofeiros e
ferinos que faziam a delícia dos auditórios.
Na poesia de Aderaldo cintilam faiscações primorosas de uma inteligência
inconfundível. Tinham os seus versos configurações geniais, mostrando a lucidez
de um espírito observador e analítico, como esses:
O filho do alfaiate — seu
brinquedo é com retalho,
O filho do jogador gosta muito é do baralho,
E o filho do preguiçoso só dorme bem no borralho,
O filho do homem praiano, seu vício é comer areia,
O filho da costureira sua roupa é muito feia,
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa alheia
O filho do carteiro — brinca com caixão e saca,
O filho do feiticeiro só fala em urucubaca,
O filho do vaqueiro junta ossinhos, chama vaca…
O filho do ferreiro, seu brinquedo é uma safra,
O filho do pescador aprende a fazer tarrafa,
E o filho do cachaceiro nasce lambendo garrafa…
O filho do jogador gosta muito é do baralho,
E o filho do preguiçoso só dorme bem no borralho,
O filho do homem praiano, seu vício é comer areia,
O filho da costureira sua roupa é muito feia,
Porque é feita de taco
Que sobrou da roupa alheia
O filho do carteiro — brinca com caixão e saca,
O filho do feiticeiro só fala em urucubaca,
O filho do vaqueiro junta ossinhos, chama vaca…
O filho do ferreiro, seu brinquedo é uma safra,
O filho do pescador aprende a fazer tarrafa,
E o filho do cachaceiro nasce lambendo garrafa…
Falando sobre a terra natal de Aderaldo, o grande Jáder de Carvalho diz:
“Cego Aderaldo… de onde era filho? Ele mesmo, nas
suas memórias aponta o Crato como o chão onde a parteira lhe apanhou o corpinho
nutrido. Mas a terra mesmo da gente não é aquela onde nasce o corpo: é aquela
onde nasce a alma. E a alma do cantador famoso veio à luz em Quixadá. Foi na
cidade das pedras na cidade do chão duro e salgado, que veio ao mundo a alma do
mais agressivo o mais lírico violeiro e cantador do Brasil.
A alma da gente, ó meu leitor — continua Jáder de Carvalho – não brota
logo com o corpo, entre as dores do parto: brota na hora em que o menino
principia a entender, a sentir o mundo, o céu, o canto dos pássaros, o mugido
de uma vaca o relincho de um cavalo, o aboio de um vaqueiro — em qualquer
dessas coisas pode estar a raiz da alma. Como pode estar também, no gemido de
uma viola, num apito de fábrica, no silvo de um navio no dobrar de um sino, no
barulho do mar.
A alma de Aderaldo nasceu — e disso tenho certeza, sob o sol de fogo de
Quixadá, ao pé de uma mãe viúva, que, de tão pobre, teve de empregar a dois
vinténs por dia o órfãozinho de cinco anos…”
Eduardo
Campos, ao analisar o Cego Aderaldo afirma:
“Não se
repetia, aí estava a grande vantagem sobre os outros.
Não era
cantador das palavras difíceis, dos que se acodem nos dicionários ou nos livros
sagrados. Os seus grandes livros de sabedoria estavam na natureza, no estranho
mas belo mundo que ele, a rigor, aprendeu a ver através dos outros”.
O
Aderaldo sempre cantou sua cegueira em diferentes ocasiões.
Eis algo
a esse respeito, de sua autoria:
Correu de mim a fortuna a luz dos
olhos perdi;
Céus, estrelas, terra e mar
Fugiram, jamais os vi,
Flores jardins, campos e prados de vê-los jamais esqueci.
Deus quer que eu viva sem lua. Sem ver do mundo a beleza.
E permitiu que eu perdesse da vida a maior riqueza,
Já não tenha a quem recorra, nem a própria natureza!
Céus, estrelas, terra e mar
Fugiram, jamais os vi,
Flores jardins, campos e prados de vê-los jamais esqueci.
Deus quer que eu viva sem lua. Sem ver do mundo a beleza.
E permitiu que eu perdesse da vida a maior riqueza,
Já não tenha a quem recorra, nem a própria natureza!
Ou esse
outro verso, final do seu soneto, dedicado à sua mãezinha, composto em Maceió
em 12 de maio de 1949, Dia das Mães.
Este Dia das Mães, como outros
dias,
Santos e puros cheios de afeição,
Abriga o bem de todas as Marias
Cantando rimas para um coração…
Mas minha mãe partiu…
Meus dezoito anos
Trouxeram-me a cegueira, foi-se a alma
Desde então eu a vejo entre meus planos
Mas somente com os olhos de minha alma!…
Santos e puros cheios de afeição,
Abriga o bem de todas as Marias
Cantando rimas para um coração…
Mas minha mãe partiu…
Meus dezoito anos
Trouxeram-me a cegueira, foi-se a alma
Desde então eu a vejo entre meus planos
Mas somente com os olhos de minha alma!…
Grande poeta e cantador Aderaldo viveu mais de 70 anos a percorrer os
sertões, em desafios e violas, a entoar versos e a recitar poemas imortais.
Aderaldo no Céu é o título de trabalho de
Pantaleão Damasceno, jornalista cearense em homenagem ao poeta após a morte.
Nele Damasceno afirma:
“Cego Aderaldo, por uma dessas coincidências da
vida, nasceu no dia de São João e morreu no dia consagrado a São Pedro.
Tratando-se do mês das tradicionais comemorações juninas, tudo indica que o
saudoso violeiro, vai encontrar o Céu em festa e de portas abertas, podendo o
Santo Chaveiro, eufórico, repetir as mesmas palavras que proferiu à chegada de
Irene à porta do paraíso segundo o poeta Manuel Bandeira:
— Entre, Aderaldo, você não precisa pedir licença.
E o velho cego, agora leve como uma pluma, e agora
enxergando tudo, observa com surpresa, aqui e ali, as belezas infinitas do
firmamento. E numa espécie de desabafo, manda-nos dizer, em mensagem de fé e
esperança, que ‘os mortos vivem não os choreis’”.
Depoimento de outro escritor, Otacílio Colares:
“O Cego Aderaldo era, a nosso ver, o último
remanescente daquela grei imensa que nos deu valores como Inácio da
Catingueira, Francisco Romano, Dantas Quezado e a negra Chica Barroso. Forte
como um carvalho, franco e simples como um eterno menino grande, passou ele a
existência a transmitir alegria, em versos que lhe saíam da alma como o arrojo
dos rios em cheia, e soube morrer tranquilo e sereno como um justo,
compenetrado de haver realizado a sua destinação, na terra que ele tanto amou e
decantou. Tipo acabado de trovador da velha cepa, com a sua morte, podemos
estar certos, encerrou-se um ciclo dos grandes cantadores aqueles que tinham
como característica primordial a singeleza no viver e no interpretar a sua
arte”.
Extraordinário rapsodo dos sertões, Aderaldo eternizou-se pelo muito que
produziu, e que está, infelizmente disperso em livros, jornais e revistas. Em
1962, foi lançado um livro com seus versos, com comentários de Raquel de
Queiroz e Paulo Sarasate. Mas esse livro hoje raro, não contém um milésimo de
sua fertilíssima produção poética, derramada em mais de 60 anos pelo Brasil
inteiro. Sua vida cantou a dor, de ver a pobreza rondando-lhe a infância
desventurada, o pai, surdo e paralítico, a mãe pobre e desassistida e a
cegueira chegar-lhe aos 18 anos de idade. Mas a tudo resistiu, valendo-se da
voz, inspiração, inteligência e lucidez, para com a viola, exaltar o sertão e
construir o seu mundo.
Humorista fez da ironia a suprema virtude nos versos, e sentia-se que,
com tato e olfato aguçado via melhor do que os que tem olhos. Ao ser
apresentado à noiva de um cidadão, sentindo-a robusta e forte; versou:
Doutor, esta sua noiva
É uma linda cachopa,
a gente olhando seus seios
Assim por cima da roupa,
é ver dois cocos na praia
Dentro dum saco de estopa.
É uma linda cachopa,
a gente olhando seus seios
Assim por cima da roupa,
é ver dois cocos na praia
Dentro dum saco de estopa.
Se eu me casasse doutor
Minha mulher era feia,
Casar com mulher bonita
toma a freguesia alheia
Cego com mulher bonita
É plantar feijão de meia…
Trovador inesquecível dos sertões, Aderaldo Ferreira de Araújo, era este
o seu nome, nasceu em Crato a 24 de junho de 1878 e faleceu em Fortaleza,
praticamente indigente*, a 29 de junho de 1967, sendo filho do casal Joaquim
Rufino de Araújo, alfaiate, e Maria Olimpia de Araújo. A sua rua de nascimento
foi a antiga Pedra Lavrada, das mais antigas do Crato, que tem o Riacho
Granjeiro às costas e é hoje chamada Pedro II. Encantou os auditórios mais
seletos de todo o Brasil e percorreu todos os sertões, vilas, sítios e
fazendas, cantando, encantando com sua verve, seu humor e sua imensa produção
poética. O que produziu garantiu-lhe a imortalidade e dele disse, em versos, na
sua despedida, Ladislau Vieira:
Já não vibra a viola do
Nordeste nas praças e nas casas das fazendas
e que nas lojas redobrava as vendas
tangida pelas mãos do antigo mestre.
A araponga de cantar silvestre
Na sua voz de metal pelas contendas tornou-se muda,
De mudez agreste
Na sua voz de metal pelas contendas.
Não mais se animam velho e criaturas
Nas noites de sermões enluaradas
Nos fogos de São João pelas calçadas…
Pois finou-se o Aderaldo, ao fim das danças
Ninguém jamais na terra o encontrará
e a “Parca a paca cara pagará…
Nordeste nas praças e nas casas das fazendas
e que nas lojas redobrava as vendas
tangida pelas mãos do antigo mestre.
A araponga de cantar silvestre
Na sua voz de metal pelas contendas tornou-se muda,
De mudez agreste
Na sua voz de metal pelas contendas.
Não mais se animam velho e criaturas
Nas noites de sermões enluaradas
Nos fogos de São João pelas calçadas…
Pois finou-se o Aderaldo, ao fim das danças
Ninguém jamais na terra o encontrará
e a “Parca a paca cara pagará…
Aquino, J. Lindemberg de. “Cego Aderaldo, o mais
lírico violeiro e cantador do Brasil”. Jornal do Commercio. Recife, 25
de junho de 1977
* A respeito dessa afirmativa, de que o cego teria
morrido como indigente, vejamos o que diz o mestre Alberto Porfírio em seu
livro ‘Poetas populares e cantadores do Ceará’:
“Em Fortaleza,
quando adoeceu para morrer, foi colocado no apartamento Eduardo Salgado da
Santa Casa de Misericórdia, quarto 6, onde, por conta do industrial Fernando
Pinto, foi assistido pelos médicos especialistas Dr. Farah Otoch e Dr. Eudásio
Barroso, muito ao contrário do que se fala por aí, dizendo que o velho poeta
fora internado e morrera como indigente.”
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