AMBIGUIDADES DO SERTÃO EM INCELENÇA DA PERSEGUIDA
Silvio Roberto Santos
Nunca se saberá se não fosse devido à presença de vários não-atores canindeenses (no dizer do diretor Silvio Gurjão) e o fato de ter sido gravado em apenas cinco dias na Vila Campos, em 2009, o curta-metragem Incelença da Perseguida causaria o interesse que na verdade provoca. Diz a resenha oficial posta na capa do DVD: “Num sertão de desmandos, a injustiça encontra na inocência sensual de Maria das Graças, vida que custa a morte da mãe e a dor do pai, a cura para o machismo, homens-genitália eternamente na linha da perseguida. Sua paixão santa pelo maior pecador arrebata-o sexualmente, convertendo-o a uma vida de sagrado prazer”. Donde destacam-se óbvios sentimentos opostos: inocência sensual, paixão santa e sagrado prazer, que vão dominar a história no decorrer dos seus 14 minutos. Provinda de antigas tradições ibéricas do sincretismo católico-mourisco, a incelença ou incelência seria um canto utilizado nas cerimônias fúnebres do Nordeste brasileiro. No filme a personagem central vivida pela bailarina Mirela Roza e interpretada na velhice por Erotilde Honório entoa, o que seria a “incelença da perseguida”, num rito de pesar pela sacrificada inocência de meninas violadas por um “rabo-de-burro”, indivíduo tarado, estuprador, no antigo linguajar sertanejo, tema que para ser tratado de forma adequada, se fez necessário seu deslocamento para o passado, devido à, supõe-se, justa severidade com que é punido tal crime no presente. Inocência que não pode ser redimida pelas 30 moedas do personagem interpretado pelo poeta Celso Gois Almeida, sob a sanção dos olhares da religião instituída (Itami de Morais) e garantia de não rebelião das vítimas pela força policial. Uma hipótese técnica para a narrativa quase sem falas, em que se explora o poder de comunicação das imagens, razão de ser da arte cinematográfica, seria a utilização de amadores (termo aqui não citado de forma depreciativa, mas apenas para diferenciação dos atores profissionais), além dos dois canindeenses já citados, Antonio Osamilca de Abreu, Manoel Leandro Lourenço (Nelzinho), Salvino Lobo e mais algum outro, outra suposição seria a de simples economia de tempo. Para não entrar em detalhes em que a linguagem do filme contamina a sua própria narrativa, talvez a questão, quase herética, ali proposta fosse: pode um pecador ser libertado por um ato não sagrado, antes pecaminoso? Pode um amor puro ser ofertado de forma pecaminosa? Resposta talvez contida no personagem de Raffael Barroso, que parte para o seminário logo após uma noite de epifania com Maria das Graças (Mirela Roza). Não teria sido o mesmo castrado ainda nessa noite com a ajuda do louco (Silvio Gurjão)? Mas não há sangue nesta cena crucial. Há um simbolismo definitivo no crucifixo que é usado pelo pecador já padre. Essa esfinge ainda espera pelo seu próximo espectador. Mas há certa evocação em versos de Balada de Santa Maria Egipcíaca, de Manuel Bandeira:
E fêz um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
a santidade da sua nudez.
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
a santidade da sua nudez.
Queira-se ver:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Incelen%C3%A7a
Excelente o curta do Silvio Gurjão, que tive oportunidade de ver, quando foi lançado na amostra de cinema cearense em 2010. Sua opção de usar amadores em papel ativo pode ser considerada no mínimo como ousadia. Segundo o próprio Gujão em depoimentos posteriores, a adaptação de um conto de sua própria autoria, pode ter diversas interpretações, todas no campo da poesia.
ResponderExcluirMais um vez, o acordacordel merece cumprimentos por seu ecletismo, gostei do enredo vou procuar ver o filme
ResponderExcluirPor e-mail, o cineasta SILVIO GURJÃO comenta a postagem de Silvio R. Santos:
ResponderExcluir"Caro, caríssimo,
não me admira, só um erudito do cordel, um pesquisador da cultura e da cultura popular, e só este mesmo, para compreender suas possibilidades de entendimento e dizer tão bem o "Incelença da Perseguida", eu não teria dito melhor, não há retoque a fazer, grato pelas palavras sensíveis e inteligentes. Apenas uma resposta a um seu questionamento, sobre a narrativa quase sem fala, resposta que você mesmo adiantou: sim, foi uma opção pela poesia da imagem, imagem que é o sertão, imaginário, e para privilegiar a narrativa, o causo, tradição na cultura popular nordestina.
Grande abraço!"
Silvio Gurjão