terça-feira, 14 de junho de 2011

Dos arquivos da revista O CRUZEIRO

O SENHOR FEUDAL DO FECHADO

Gustavo Barroso

Gravura de Jô Oliveira
                                                                                             
                Escreveu Pascal que é por demais perigoso mostrar a animalidade do homem sem apontar a sua grandeza, sendo pior deixá-lo na ignorância de ambos e convindo, portanto, fazer-lhe ver esses dois aspectos de sua personalidade. Devem estas sábias palavras do insigne pensando francês servir sempre de base àqueles que estudam o fenômeno do cangaceirismo nos sertões nordestinos em todas as suas modalidades, porque os chamados bandidos ou bandoleiros por ele produzidos oferecem-nos exemplares humanos de complexa psicologia, algumas vezes dignos até do título de heróis.
                Em livro que a respeito publiquei há perto de 40 anos, disse: “Os bandidos não são produtos exclusivos das letras brasileiras do Nordeste. Em todos os povos, tem existido com denominações diversas. O jagunço não é criminoso por mero acidente do seu caráter; não é criminoso, as mais das vezes, por si próprio. Ele termina uma série de antecedentes os mais variados ou é um elo na seriação de causas as mais diversas.”
                Dentro dessas linhas gerais deve ser enquadrada historicamente a figura de um dos mais famosos cangaceiros do sertão cearense na segunda metade do Século XIX, José Antônio do Fechado, nascido em Canindé no ano da graça de 1824, sob o governo do nosso primeiro imperador. Quando veio ao mundo, já se espraiava a milagrosa nomeada do padroeiro daquela terra — S. Francisco das Chagas. No fim do Século XIII, as autoridades coloniais tinham aldeado naquele rincão, ao fundo do antigo Sertão dos Ratos, que se estendia pelas ribeiras do Rio Ceará até aquelas paragens, os índios da nação Canindé, até esse tempo acampados na povoação de Monte-Mor-o-Novo da América, depois vila e enfim cidade de Baturité. E já em 1775 o português Francisco Xavier de Medeiros edificava ali a primeira capela dedicada ao Pobrezinho de Assis. A construção, em grande parte feita de esmolas, levou 20 anos. Ao ser  terminada em 1795, o glorioso santo obrou o primeiro milagre, salvando da morte certa um operário que caíra do andaime da torre. A notícia correu célere por todo o interior cearense, iniciando-se, então, as peregrinações que fariam do Canindé a Compostela ou Lourdes do Ceará. Passaram-se 22 anos e o bispo de Pernambuco, D. Frei Antônio de S. José, elevou, em concessão especial de 10 de junho de 1817, a capela à Matriz, tal a importância que adquirira. Um alvará de  D. João VI, de 30 de outubro do mesmo ano, aprovou a citada concessão. Todavia o povoado do Canindé somente seria elevado à categoria de vila, com todas as suas prerrogativas municipais, por ato do governo imperial de 29 de julho de 1846. Tinha nessa data, José Antônio do Fechado a idade de 22 anos.
                Seu pai, o capitão José Bernardo de Sousa Uchoa, antigo presidente do Senado a Câmara, proprietário da fazenda do Fechado, era um dos homens mais influentes da localidade. Representante legítimo por sua posição, educação e tendência do antigo patriarcalismo feudal que informou a vida pastoril nordestina e degenerou, mais tarde, no coronelismo, lutava pelo domínio da política municipal e, naturalmente, se tinha muitos amigos, também fizera inimigos. Entre estes, o maior era o tenente-coronel Manuel Mendes da Cruz Guimarães. No sertão, o ódio dos pais passa para os filhos e as famílias se empenham em lutas renhidas, que se propagam através das gerações como na Itália medieval.
                No ano de 1852, quando o Império Brasileiro atingia seu apogeu, militarmente com a vitória dos Caseros, politicamente com a conciliação dos partidos realizada pelo futuro marquês do Paraná, diplomaticamente com a orientação do futuro visconde do Uruguai e financeiramente com o ágio do papel-moeda sobre o ouro, na vila do Canindé se processará com violência a eleição do novo juiz de paz, que devia substituir o que completara o quadriênio. O triunfo na mesma demonstraria quem de fato tinha eleitorado e prestígio no município. Exercendo o cargo de delegado de Polícia, o capitão José Bernardo de Sousa Uchoa disputava-o contra seu rival, o tenente-coronel Cruz Guimarães, e seu braço direito era o filho Antônio, em plena virilidade sertaneja.
                Tinha o moço renome de valente. Os inimigos paternos lhe haviam atribuído a morte dum tal Marcolino, que raptara uma moça e com ela casa contra a vontade da família. Achava-se José Antônio na companhia de um amigo, Carlos Sales, parente da jovem, quando este se encontrou com o rapaz e lhe tirou a vida. As opiniões sobre o caso dividiram-se. Os mais apaixonados acusavam veementemente a José Antônio. Os seus amigos e parentes eximiam-no de toda a culpa. Alguns havia que admitiam ter ele ajudado o companheiro a consumar o crime. Submetido a processo e levado ao Tribunal do Júri, este o absolveu. As más línguas, porém, nunca o perdoaram.
                No dia da eleição, houve grande e grave conflito entre os partidários dos Uchoas e dos Cruz Guimarães. A briga começou a cacete e faca na Igreja, onde se realizava o pleito, acabando em tiroteio pelas ruas, durante o qual morreu baleado o tenente-coronel Manuel Mendes da Cruz Guimarães. Apontou-o José Antônio como autor do feito. Foi outra vez processado e submetido a julgamento. De novo, os juízes de fato o absolveram. Murmurava-se que desta, como da primeira vez, por influência da família e do seu partido político.
                No decurso do tempo, por este ou por aquele motivo, quatro assassínios se atribuíram a José Antônio. Mais duas vezes processado e julgado, foi absolvido. Diziam os amigos que era homem valente, cavalheiresco e generoso, capaz de praticar as mais belas ações. Assuavam-lhe os inimigos que não passava duma fera e moviam-lhe contínua, implacável perseguição. Refugiado em sua fazenda do Fechado, cercado de acostados fiéis, verdadeiros bravi,  ele acabou não se deixando mais citar pela Justiça e resistindo à prisão, de armas em punho. Certa vez, um destacamento de mais de cem praças cercou-lhe a casa e foi repelido com muitas perdas, depois de violento assalto.
                O barão feudal sertanejo continuou entocado. Nos últimos anos da Monarquia, conta-se que o comandante da Polícia do Ceará, moço destemido, decidiu acabar com o José Antônio. Levou consigo numerosa tropa, acampou-se nas proximidades do Fechado e, antes de desencadear o ataque, vestido à paisana, montou a cavalo e explorou os arredores. Queria conhecer bem o terreno onde pisava. Numa volta da estrada, encontrou um homem já encanecido, porém forte, sadio, musculoso, de fisionomia simpática, voz suave e lhana, maneiroso e afável, bem montado, com o qual se pôs a conversar. Aproveitando a ensancha, o oficial procurou obter informações sobre o cangaceiro, pois que o cavaleiro era, segundo parecia, morador das cercanias.
                O desconhecido contou-lhe que a casa do Fechado constituía verdadeira fortaleza, com paredes e portas à prova das balas daqueles tempos, que lá havia capangas que cada estaca das cercas era um homem armado. Todos eles bravos e fiéis. Depois, narrou minuciosamente o que sabia da vida do José Antônio, das injustas acusações de que era vítima, dos atos de justiça que praticava e das razões de honra pessoal que o levaram a não se submeter às autoridades. Assim conversando lado a lado, chegaram a uma encruzilhada, onde se despediram. O comandante declinou sorridente, seu nome e qualidade, fazendo oferecimentos corteses. O outro sorriu, tirou o chapéu, apertou-lhe a mão e disse-lhe com a maior calma deste mundo:
                — Minha casa fica ali adiante, por trás daquele morro. Estou lá às suas ordens. É a fazenda do Fechado e eu sou o José Antônio.
                Picou o cavalo com as esporas e sumiu-se na caatinga. O oficial ficou estarrecido no meio da estrada. Contam que voltou ao acampamento e regressou a Fortaleza, recusando-se a perseguir o caudilho sertanejo. Esta é uma das narrativas, decerto lendárias, que contribuíram para aureolar de prestígio aos olhos do povo a figura desse senhor feudal do Século XIX.
                Em avançada idade, atingiu o limiar do Século XX, de vez que faleceu em 1918, com 94 anos de idade, na fazenda Lagoa das Pedras, onde nos últimos tempos de sua vida passara a residir. Durante alguns anos foi obrigado a morar em Fortaleza, capital do Estado, a fim de evitar a perseguição política que lhe moviam na terra natal. E o curioso é que se casou aos 86 anos. Fibra extraordinária a desses velhos sertanejos criados em contato com a natureza agreste e rude, formadora duma raça de fortes. Deles diria Júlio César o que disse dos belgas, que eram os mais viris dos povos da Gália, porque viviam longe das cidades, isto é dos centros de civilização e amolecimento, de todas as coisas que ad affeminando animos pertinent.

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NOTA DO BLOG - Esse texto foi reproduzido a pedido do poeta SILVIO ROBERTO SANTOS. O fluente relato do grande historiador Gustavo Barroso é uma excelente referência para o poeta popular. Eis um texto que precisa ser resgatado em cordel. Alguém se habilita?

Um comentário:

  1. Gustavo Barroso publicou em seu tempo dois trabalhos temáticos sobre Canindé na extinta revista O Cruzeiro: "Os Barquinhos de S. Francisco" e "Senhor Feudal do Fechado". São trabalhos literários de grande valor, um deles resgatado agora por Arievaldo no blog. G. Barroso tinha o dom de captar aspectos assim e dar-lhes cores primorosas. Valeu pela postagem.

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