Entre o real e o imaginário
|Em produção | Cantador que recebeu homenagens de Baden,
Gismonti, Luiz Gonzaga e do Grupo Opinião reviverá num "drama figural do
sertão"
Publicado por O POVO em 30/04/2019
Imagens de Rosemberg
Cariry e Cego Aderaldo (Foto: DIVULGAÇÃO)
Para muitos especialistas, as composições que Baden e
Gismonti dedicaram ao cego cearense estão entre as criações supremas de nossa
música popular. Prova disso, é que artistas internacionais da grandeza de Ravi
Shankar, Simone Zanchini, Grazyna Auguscik, Naná Vasconcelos e Ricardo Hersz
emprestaram o virtuosismo de seus instrumentos e, no caso de Grazyna, sua voz,
a gravações antológicas da composição gismontiana.
Rosemberg Cariry, 65 anos, é hoje o mais importante difusor
da obra e vida de Aderaldo. Em 2012, ele lançou, no Cine Ceará, o documentário
Cego Aderaldo, O Cantador e o Mito. Em 2017, o diretor de Corisco & Dadá
lançou poderoso livro-álbum - Cego Aderaldo - O Homem, O Poeta e o Mito.
Recheou, com vigorosa narrativa sobre os 89 anos de vida do artista nascido no
Crato, alentadas 779 páginas. E, para enriquecer seu ensaio sobre a criação
popular nordestina, o autor mobilizou monumental iconografia direta ou
indiretamente ligada a Cego Aderaldo. Acervo de imagens de um cantador (e seu
entorno) jamais reunido em um só volume. O álbum, editado pela Interarte, traz
ainda CD com o longa documental que o cineasta dedicou ao popular conterrâneo.
Ao regressar, agora pela vereda ficcional, à vida do Cego
Aderaldo, Rosemberg Cariry promete dar asas à imaginação. "Vou contar em A
Lenda do Cego Cantador" - promete - "a história real e imaginária do
poeta, cordelista, trovador, músico, projecionista de filmes, empresário,
negociante, propagandista, dono de circo, violeiro-cantador-repentista Aderaldo
Ferreira de Araújo". O roteirista não exagera. O cego exerceu todos estes
ofícios. Desprovido da visão desde os 18 anos, mesmo assim dedicou-se à
projeção de filmes e foi, inclusive, fonte inspiradora (e transfigurada) de um
dos longas ficcionais de Cariry: Cine Tapuia (2008).
O cego do Crato teve infinitos e importantes pares e amigos,
dispostos a tudo para perpetuar sua obra. A começar por Rachel de Queiroz
(1910-2003), amiga sincera que o recebia em sua fazenda Não Me Deixes, no
Quixadá.
Em uma das crônicas que dedicou ao conterrâneo em sua
importante coluna na revista O Cruzeiro (outubro de 1959), a autora de O Quinze
registrou: "Ele é a voz cantadeira de toda uma gente que não tem outra
forma de expressão própria, que não lê nem escreve e, na sua necessidade de
poesia e comunicação, fala e se entende pela boca do cantador. Ele é o lírico,
o épico, o noticioso, o cômico".
Cariry será obrigado a resumir a acidentada e longa saga do
Cego Aderaldo em sua "narrativa ficcional e lendária". Para materializar
em imagens "o desejo de revelar também o mito e a narrativa
romanceada", poderá abrir o filme com o doloroso momento em que o jovem
perdeu a visão frente à caldeira de uma fábrica, na qual era trabalhador (mal)
assalariado.
Ou será que escolherá a tragédia da perda da mãe, aquela que
cuidava do filho cego, em momento em que a pobreza da família era humilhante?
Tão humilhante, que para conseguir mortalha para embalar o corpo materno,
Aderaldo dirigiu-se a local onde paroaras (cearenses que iam trabalhar nas
seringas da Amazônia e conseguiam acumular dinheiro) se divertiam. Mesmo com o
coração mortificado, se dispôs a tocar sua viola e cantar em troca de tostões
que lhe permitissem "amortalhar a mãe".
Se preferir momento menos sofrido, Cariry poderá abrir seu
filme com as festivas chegadas do Cego Aderaldo à fazenda Não Me Deixes. Rachel
de Queiroz relembrou, também em crônica, o que acontecia com os trabalhadores
quando o Cego aparecia por lá: "Os homens largavam a enxada nos roçados,
as mulheres deixavam o milho no pilão, esquecendo o pão e a hora da janta.
(...) E quando se deu fé, o terreiro e o alpendre estavam cheios de gente, e
Aderaldo, sentado na cadeira de lona, dava a sua grande risada e contava causos
e desfiava motes e depois pegava no grande violão e cantava e rememorava
desafios, e fazia, como é de praxe, a louvação dos presentes".
Respaldado
pelas pesquisas que alimentaram seu longa documental, Rosemberg garante
"dramaturgia que beberá nas fontes da oralidade", ao mesmo tempo em
que "retomará uma estética mais ousada, elaborada a partir das
manifestações dramáticas populares".
Se conseguir
transformar seu roteiro em realidade (apesar das dificuldades impostas por
tempos de crise econômica e governo avesso à produção cultural), o realizador
cearense promete "um drama figural do sertão, com estrutura de musical
popular, alegórico e transbarroco".
Cariry já
visualiza "sequências e cenas compostas ao modo do romanceiro do
cordel", tendo como "fio condutor da história, o grande amor de
Aderaldo por Angelina, um amor trágico e irrealizado, que lhe marcará, para
sempre, a vida, a poesia e a morte".
Angelina
Coelho de Moraes, há que se esclarecer, foi o amor de juventude de Aderaldo.
Mas ao vê-lo cego, a moça desistiu do casamento. Casou-se com outro. O Cego
morreu solteiro e alimentou-se, pelos muitos anos que viriam, daquele amor de juventude.
Rosemberg Cariry prevê, em seu drama figural, o registro das
principais criações ("cantorias") do Cego Aderaldo, interpretadas por
grandes nomes da viola contemporânea do Nordeste.
É mais que natural que Rosemberg Cariry, assim como Rachel de
Queiroz, ame as cantorias de Cego Aderaldo. Afinal, na qualidade de
conterrâneos do artista, ambos tiveram proximidade com seus versos e seu
original toque de viola (rabeca, ou bandolim). Mas o que levou dois fluminenses
como Baden Powell (1937-2000) e Egberto Gismonti, a se interessarem pelo
cantador nordestino a ponto de imortalizá-lo em composições que Zuza Homem de
Melo e Tárik de Souza (ver Ponto de Vista) consideram verdadeiras obras-primas?
Tudo indica que Baden Powell conheceu a arte do Cego Aderaldo
graças ao antológico Show Opinião, que estreou em Copacabana, em dezembro de
1964. O espetáculo, dirigido por Augusto Boal, uniu Nara Leão, Zé Ketti e João
de Vale, e transformou-se em espécie de "missa leiga".
Perplexa com o triunfo do golpe militar de 1964, a esquerda
dedicada à criação artística resolveu produzir espetáculo capaz de somar música
e protesto político, mas sem perder o humor. Entre os momentos mais divertidos
do Show Opinião está o que evoca peleja entre o Cego Aderaldo e Zé Pretinho, materializada
em mais de 370 versos (exatas 63 sextilhas rimadas). Nara, cautelosa, enfrenta
o trava-língua "Quem a paca cara compra/ cara a paca pagará", com
variações ("Quem a cara cara compra/ Caca cara Cacará"). Estes versos
fazem parte da Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (este debocha
da cegueira de Aderaldo, que responde com impropérios sobre a negritude do
contendor, mais politicamente incorreto, impossível). O público que, todas as
noites, lotava o Teatro Opinião, ria satisfeito da trinca Nara-Zé-João evocando
o cantador cearense.
Como Baden participou de shows do Grupo Opinião (e deve ter
ouvido infinitas vezes o elepê que resultou do espetáculo, em 1965), era
natural que conhecesse e admirasse a obra do Cego Aderaldo. Além do mais, graças
ao apoio de políticos e, em especial do poderoso paraibano Assis Chateaubriand
e de seu império radiofônico e televisivo, o Cego teve viagens patrocinadas ao
sudeste brasileiro. Viajou a São Paulo e/ou Rio por cinco vezes.
Baden compôs Cego Aderaldo, umas mais sublimes faixas de seu
clássico 27 Horas de Estúdio em 1969. A composição de mesmo nome (Cego
Aderaldo), do multi-instrumentista Egberto Gismonti, foi criada em 1981. O
artista do Carmo era, naquele momento, um astro internacional, festejado por
artistas da Índia, Polônia, Itália, Alemanha, França, Noruega, etc.
Numa tarde de domingo, em março deste ano, conversamos, por
telefone, com Gismonti. O virtuose do violão confessou ter poucas lembranças da
origem de Cego Aderaldo, uma de suas "800 composições". Gismonti não
deu o relevo merecido à sua composição, gravada por muitos e grandes artistas,
incluindo Ravi Shankar e a voz aliciante da polonesa Grazyna Auguscik.
Por Maria do
Rosário Caetano (pesquisadora e crítica de cinema)