A SAGA AVENTUROSA
DO
CANTOR DA BORBOREMA
Arievaldo Viana*
Ilustração: Jô
Oliveira
No dia 7 de setembro de
1869, nascia mais um patriota no município de Bananeiras-PB: o menino João
Melchíades Ferreira da Silva, que se auto-intitularia, no futuro, O Cantor da
Borborema. No folheto "Os homens da cordilheira" (há um exemplar
catalogado nos Fundos Villa Lobos, organizado por Mário de Andrade), João
Melchíades diz que seu avô materno, o beato Antônio Simão, construiu uma igreja
na serra, a pedido do padre Ibiapina. Ele teria fundado também uma escola para
educar crianças, onde o próprio Melchíades aprendeu as primeiras letras. No
terrível triênio de seca que foi de 1877 a 1879, já órfão de pai e criado sob a
tutela desse avô, o menino João Melchíades foi raptado por um grupo de ciganos.
Dizem que ele teria se encantado pela música e resolveu acompanhá-los. Sua mãe
só foi resgatá-lo de volta cerca de dois anos depois.
De espírito inquieto e
aventureiro, sua sina era correr o mundo. Aos 18 anos sentou praça no Exército,
ainda na Monarquia. Em 1897 João Melchíades, integrante do 27º Batalhão de
Infantaria das Forças Armadas, foi convocado para combater na Guerra de
Canudos, onde quase perdeu a vida. Após a guerra, foi promovido a Sargento-Mor.
Lembranças familiares, recolhidas num velho manuscrito por sua neta Lela
Melchíades, a partir dos relatos de sua avó Senhorinha, informam que ele voltou
traumatizado da Guerra e não gostava de tocar no assunto. Ficou muito chocado
ao ver os cadáveres de mães carbonizados e abraçadas aos filhinhos, naquilo que
Euclides da Cunha batizou de "a nossa Vendeia" ou "Troia sertaneja".
Ele participou ativamente da tomada das trincheiras às margens do rio Cocorobó,
uma das refregas mais sangrentas daquela luta fratricida.
Informa a pesquisadora
Ruth Brito Lêmos Terra que a atividade poética de Melchíades é anterior a 1898.
Ela baseia-se no poema "Melchíades escreve a Cícero de Brito Galvão, no
Rio de Janeiro, sobre a açudagem do Seridó", onde o poeta faz referência a
um açude de propriedade do cangaceiro Silvino Ayres, mentor de Antônio Silvino.
O ano de 1898 foi o mesmo em que Silvino Ayres foi preso e, por conta disso, sucedido por
seu êmulo no comando do cangaço.
Em 1903, João
Melchíades foi designado para combater na fronteira do Acre com a Bolívia, onde
contraiu a febre béri-béri, que quase o vitimou. Nesse período, o poeta andava
na companhia do cantador Joaquim Jaqueira e chegou a fazer apresentações em
Manaus e em Belém do Pará, ao som da viola. No ano seguinte, segundo apurou o
pesquisador baiano José Calasans, Melchíades resolveu publicar, em cordel, suas
memórias sobre Canudos. É possível que tenha sido escrito ainda no século XIX,
após o término da guerra. Sua visão é alinhada com a propaganda difamatória que
se fazia contra o beato Antônio Conselheiro, por meio de libelos divulgados na
imprensa, sob a orientação do Ministério da Guerra. Mas nem por isso ele deixa
de reconhecer a bravura dos conselheiristas em estrofes antológicas como esta:
"Escapa, escapa, soldado
Quem tiver perna que corra
Quem quiser ficar que fique
Quem quiser morrer que morra
Há de nascer duas vezes
Quem sair desta gangorra".
"Escapa, escapa, soldado
Quem tiver perna que corra
Quem quiser ficar que fique
Quem quiser morrer que morra
Há de nascer duas vezes
Quem sair desta gangorra".
Na opinião de
Calasans, Melchíades era poeta de reconhecida capacidade, como podemos
comprovar nesses versos que consignam um instante dramático da fuga dos
soldados da terceira expedição. Na década de 1970, a pesquisadora Ruth Terra
entrevistou uma filha do poeta, Santina, e teve acesso a uma carta de 1914,
dirigida à sua esposa, Senhorinha (mãe de seus quatro filhos), falando sobre o
folheto do Matador de Onças ("História do Capitão Cazuza Sátyro").
Nessa correspondência, o poeta fala também de outras obras e de seus filhos. O
pesquisador Mário de Andrade considerou esse poema excelente ("Cazuza
Sátyro, o Matador de Onças") e anotou isso, de próprio punho, num exemplar
que se encontra na coleção dos Fundos Villa-Lobos. Diz Mário de Andrade:
"Estupendo! Não porque esteja feito com espírito, mas pelo interesse
extraordinário de quanto conta pelo realismo, às vezes duma firmeza homérica,
com que conta. É admirável e vale mais que qualquer espírito".
Outro folheto muito elogiado, que tornou-se um dos maiores clássicos da chamada Literatura de Cordel é a "História do Valente Sertanejo Zé Garcia", assim avaliado por mestre Câmara Cascudo, em seu "Vaqueiros e Cantadores": "Retrata deliciosamente o sertão de outrora, com as pegas de barbatão, escolhas de cavalos para montar, rapto de moças, assaltos de cangaceiros, chefes onipotentes e vaqueiros afoitos, cantadores famosos e passagens românticas. Pertence bem ao ciclo social que terminou no século XX e que durara até o século XIX".
Outro folheto muito elogiado, que tornou-se um dos maiores clássicos da chamada Literatura de Cordel é a "História do Valente Sertanejo Zé Garcia", assim avaliado por mestre Câmara Cascudo, em seu "Vaqueiros e Cantadores": "Retrata deliciosamente o sertão de outrora, com as pegas de barbatão, escolhas de cavalos para montar, rapto de moças, assaltos de cangaceiros, chefes onipotentes e vaqueiros afoitos, cantadores famosos e passagens românticas. Pertence bem ao ciclo social que terminou no século XX e que durara até o século XIX".
O PAVÃO MISTERIOSO
Entre 1925 e 1929,
circula a primeira edição impressa do folheto "O Pavão Misterioso",
assinada por João Melchíades Ferreira da Silva. Alguns pesquisadores asseguram
que já havia uma versão do poema, escrita anteriormente pelo paraibano José
Camelo de Melo Rezende (1885 - 1964) mas que ainda não fora publicada, mas
cantada ao vivo. José Camelo era um autor imaginoso e brilhante, de grandes
recursos poéticos. Ao que parece, a polêmica em torno da autoria só ganhou
repercussão após a morte de Melchíades, em 1933. Depois que o folheto se
consolidou como um estrondoso sucesso, tornou-se objeto de cobiça de vários
editores, que incitavam a polêmica para facilitar a sua publicação sem pagar
direitos autorais a nenhum dos dois poetas.
Segundo Átila de Almeida e José Alves Sobrinho, autores do Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, nesse período, José Camelo vinha sofrendo perseguições e havia se
afastado da Paraíba e se refugiado no Rio Grande do Norte. Essa situação nunca
foi devidamente esclarecida. Aroldo Camelo de Melo, sobrinho do poeta, assegura
que ele estava preso, em João Pessoa, por causa de dinheiro falso que recebera
de um editor no Recife (PE). O pesquisador José Paulo Ribeiro, de Guarabira-PB, encontrou cópia de um folheto escrito e publicado por José Camelo narrando esse episódio do dinheiro falso, dos seus percalços perante à Justiça e de como conseguiu se livrar da acusação. Vale ressaltar que o mais importante editor de cordel da época, atuando no Recife-PE, era ninguém menos que João Martins de Athayde, com quem José Camelo mantinha negócios. Entretanto, no folheto intitulado "A prisão e soltura de José Camelo" o poeta afirma que recebeu as cédulas falsas de um rapaz que lhe comprou quatrocentos folhetos para revenda. O mesmo rapaz apareceu à noite na cantoria que realizava em companhia de um colega. Parecendo cortês e generoso, colocou uma cédula graúda na bandeja e pegou outras menores, verdadeiras, como troco. O caso do dinheiro falso veio a ser descoberto por um policial, a quem um amigo do poeta comprara um carneiro gordo com uma das cédulas recebidas na dita cantoria. Daí em diante começa o seu calvário, a fim de provar a sua inocência. É um caso que precisa ser melhor apurado, já que chegou aos tribunais da Justiça paraibana.
Em seus livros, a
pesquisadora Ruth Terra apresenta uma lista completa (ou quase) de todos os
poetas populares que haviam publicado folhetos entre 1898 e 1930. Na Casa de
Rui Barbosa e outras coleções pesquisadas pela autora, aparecem diversos
folhetos de João Melchíades, mas nenhum de José Camelo, até o ano de 1930.
Segundo o testemunho do poeta Antônio Ferreira da Cruz, que escreveu um folheto intitulado "A morte de João Melchíades - O Cantor da Borborema", publicado pela tipografia da Popular Editora, de João Pessoa, Melchíades era uma espécie de "professor de cantoria" e tinha muitos discípulos. Um de seus parceiros era justamente o cantador José Camelo de Melo, com quem viajava fazendo apresentações. Aroldo Camelo informa que, durante uma dessas apresentações, a questão da autoria do "Pavão Misterioso" veio à baila, mas em clima amistoso. Camelo terminou uma estrofe dizendo: "O pavão tem duas asas / pode voar com nós dois". Melchíades respondeu com outra estrofe, no mesmo tom. Eis o que diz Antônio Ferreira da Cruz, na página 4 do folheto já mencionado, falando inicialmente de uma polêmica (poética) que Melchíades (católico fervoroso) mantinha com os evangélicos: "Era um cantor educado/ Na regra de divertir/ Não bebia, não jogava,/ Nem gostava de mentir;/ Com qualquer pastor da crença/ Gostava de discutir./ Em toda zona brejeira/ Mostrava bem seu emblema/ Era muito conhecido/ Por Cantor da Borborema/ Desde o Pico do Jabre/ Ao Boqueirão da Jurema./ Ensinou muitos cantores,/ Era um escritor de fé/ Andou com José Camelo/ Ensinou Antônio Thomé/ Ensinou José Thomás/ Lecionou Josué./ Em toda escala de versos/ Ele sabia cantar/ Ensinou a cantador/ Que não sabia falar/ Ainda que alguém lhe desse/ A paga de o difamar".
Segundo o testemunho do poeta Antônio Ferreira da Cruz, que escreveu um folheto intitulado "A morte de João Melchíades - O Cantor da Borborema", publicado pela tipografia da Popular Editora, de João Pessoa, Melchíades era uma espécie de "professor de cantoria" e tinha muitos discípulos. Um de seus parceiros era justamente o cantador José Camelo de Melo, com quem viajava fazendo apresentações. Aroldo Camelo informa que, durante uma dessas apresentações, a questão da autoria do "Pavão Misterioso" veio à baila, mas em clima amistoso. Camelo terminou uma estrofe dizendo: "O pavão tem duas asas / pode voar com nós dois". Melchíades respondeu com outra estrofe, no mesmo tom. Eis o que diz Antônio Ferreira da Cruz, na página 4 do folheto já mencionado, falando inicialmente de uma polêmica (poética) que Melchíades (católico fervoroso) mantinha com os evangélicos: "Era um cantor educado/ Na regra de divertir/ Não bebia, não jogava,/ Nem gostava de mentir;/ Com qualquer pastor da crença/ Gostava de discutir./ Em toda zona brejeira/ Mostrava bem seu emblema/ Era muito conhecido/ Por Cantor da Borborema/ Desde o Pico do Jabre/ Ao Boqueirão da Jurema./ Ensinou muitos cantores,/ Era um escritor de fé/ Andou com José Camelo/ Ensinou Antônio Thomé/ Ensinou José Thomás/ Lecionou Josué./ Em toda escala de versos/ Ele sabia cantar/ Ensinou a cantador/ Que não sabia falar/ Ainda que alguém lhe desse/ A paga de o difamar".
No romance "A
pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta", de Ariano Suassuna,
João Melchíades Ferreira aparece como padrinho de crisma e mestre de cantoria
de Quaderna e de seu parceiro Lino Pedra Verde. Pelo visto, mestre Ariano tinha
ciência dessa atividade de Melchíades. A saga do Cantor da Borborema deverá
virar livro. Para isso estamos iniciando uma cuidadosa pesquisa a fim de contar
a sua história sem acirrar, ainda mais, essa polêmica infrutífera que ainda
hoje norteia os voos do Pavão Misterioso.
* Arievaldo Viana nasceu nos Sertões de
Quixeramobim (Ceará), em 1967. É poeta, cordelista, escritor e ilustrador. Seu
livro mais recente é a biografia "Leandro Gomes de Barros - Vida e
Obra" (2014)