PERCALÇOS E PRECONCEITOS ENFRENTADOS
POR LUIZ GONZAGA NA SUA ESCALADA PARA A FAMA
Por: Arievaldo Vianna*
Negro, pobre,
Nordestino (ou nortista, como se dizia na época) e semianalfabeto. Era esse o
perfil de Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), que viria a ser aclamado Rei
do Baião, depois de enfrentar toda sorte de afrontas e preconceitos. Forte,
determinado, inteligente e obstinado, ele foi vencendo todas as barreiras que
impediam a sua trajetória, se afirmando como gênio da música brasileira. Foi
uma carreira cheia de percalços, de proibições, de afrontas que fariam com que
muitos na sua condição desanimassem na metade do caminho. Mas o ‘Lua’ superou
tudo isso com seu talento e também com a sua teimosia.
Fugido de casa em
1930, com 18 anos incompletos, devido o preconceito do pai de sua namorada, que
não queria a filha branca namorando com um negro, Luiz Gonzaga sentou praça no
23º Batalhão de Caçadores, em Fortaleza. Para tanto, teve que aumentar a idade a
fim de ser aceito como recruta, sem a devida autorização de seus pais. No
Exército ele percorreu vários Estados do Brasil. Depois de servir as Forças
Armadas por uma década, deu baixa em 1940 e resolveu se apresentar no Mangue,
zona boêmia do Rio de Janeiro, então Capital da República, passando um pires
depois das apresentações para recolher donativos, com os quais tentava
sobreviver modestamente. Morava na casa de outro músico, Xavier Pinheiro, que
juntamente com Dina, sua esposa, se tornaria responsável pela criação do filho
Gonzaguinha.
Luiz Gonzaga era um
danado. Nunca foi acomodado. Tentou a sorte em vários programas de calouros,
sendo “gongado” em alguns ou tirando notas medíocres noutros, sem jamais
desistir de seu intento. Um grupo de estudantes cearenses pediu-lhe que deixasse
de tocar valsas, polcas e tangos que costumava apresentar nas boates, para
tocar a música regional do Nordeste, aquela melodia dos sambas de latada, dos
pés-de-serra do sertão. A dica foi preciosa. Com “Vira e Mexe”, “Xamego” e
“Pé-de-Serra”, três solos genuinamente sertanejos, conseguiu se projetar e
acabou tirando nota máxima no programa de auditório do exigente Ary Barroso.
Daí por diante o sucesso começou a lhe sorrir e o sanfoneiro do Araripe foi
contratado pela RCA Victor, uma gravadora multinacional responsável pelo
lançamento de grandes nomes como Orlando Silva e Nélson Gonçalves.
Mas logo veio o diabo
do preconceito. Os diretores da gravadora diziam que ele tinha “voz de taboca
rachada” e o proibiam de cantar. Também foi proibido de cantar no rádio, a
grande vitrine da época, o que o levou a
entregar suas composições a outros intérpretes, como Manezinho Araújo, o Rei da
Embolada, e o conjunto Quatro Ases e Um Coringa, formado por jovens músicos do
Ceará. Foram eles os responsáveis pela
primeira gravação de Baião, que teve um sucesso estrondoso. Na opinião dos
entendidos, a voz de Luiz Gonzaga estava longe de corresponder aos padrões
estéticos da época, em que predominavam os vozeirões de Vicente Celestino, Francisco
Alves e Orlando Silva. Usando da sua astúcia habitual, Gonzaga blefou, dizendo
que iria gravar na concorrente Odeon, usando o pseudônimo de Januário, nome de
seu pai. Victório Lattari, diretor da RCA, acabou consentindo. Nessa época os
discos 78 rpm traziam apenas duas gravações, uma em cada face. A condição era
continuar gravando um ‘solo’ no lado A e uma composição cantada no lado B. Aos
poucos Luiz Gonzaga foi agradando e conquistando uma legião de admiradores. O
sucesso foi tão grande, que a sua cota de direitos autorais praticamente
dobrou. O diretor balançava a cabeça e dizia:
“— Há gosto para tudo
nesse mundo!”
Mas preconceito pior
ainda estava por vir... Foi um
verdadeiro pandemônio quando ele tentou se apresentar no auditório da Rádio
Nacional usando um chapéu e assessórios de couro na sua vestimenta, lembrando
dois tipos característicos do Nordeste: o vaqueiro e o cangaceiro. Sua intenção
era explicitar a sua condição de Nordestino, a exemplo do que fazia outro
sanfoneiro, o gaúcho Pedro Raymundo, que entrava no palco trajando o chapelão, as
bombachas e a cuia de chimarrão, traje típico do Sul do País. Floriano Faissal,
diretor artístico da Rádio Nacional, ficou possesso quando o viu caracterizado
daquela maneira e decretou:
“— Enquanto eu mandar
nesta rádio, não permitirei que você apareça diante de nosso público vestido de
bandido de Lampião”.
Em 1951, após dez anos
de uma carreira sempre ascendente, apesar do sucesso e da fama que
experimentava em todo o País, ainda teria de enfrentar outras agruras e
humilhações ao longo de sua carreira. A pior delas aconteceu em São Paulo, quando foi barrado na portaria da Rádio Gazeta,
então conhecida como “a emissora da elite”, que não permitia a entrada de
pretos em seu auditório.
Luiz Gonzaga, Marinês e Pedro Sertanejo, num forró em São Paulo.
Revista do Rádio, número 81 - março de 1951
(Acervo da Biblioteca Nacional)
(Acervo da Biblioteca Nacional)
Numa matéria
intitulada “PRETO NÃO ENTRA – LUIZ GONZAGA TEVE SUA ENTRADA BARRADA NA PORTA DA
RÁDIO GAZETA, DE SÃO PAULO”, a Revista do Rádio, edição de número 81, de 27 de
março de 1951, lemos o seguinte:
“O assunto já havia
sido tratado, e bem tratado, pelos nossos colegas paulistas de “Radar”: Luiz
Gonzaga tivera sua entrada impedida nas dependências da Rádio Gazeta, capital bandeirante,
semanas atrás, apenas porque era preto. Incrível que pareça, isso acontece em
pleno Brasil, em plena capital de um dos nossos maiores Estados! E eis agora,
dias passados, o acaso nos põe diante de Luiz Gonzaga, lá mesmo em São Paulo,
no aeroporto. E ainda o acaso nos traz o assunto à baila.
— É isso mesmo, Luiz,
que a Gazeta proibiu sua entrada no estúdio por ser você de cor?
E, atendendo o nosso
pedido, para que nos detalhe o caso tal qual se passou, Luiz Gonzaga começou:
— Uma artista da Rádio
Gazeta, aliás senhora de um amigo meu, convidou-me para assistir ao seu
programa. Trata-se aliás de uma grande acordeonista e eu, por laços de amizade com
o casal e também por apreciar imenso o acordeón, acedi ao convite. À hora
marcada cheguei à porta de entrada da Rádio Gazeta. Veio o porteiro ao meu
encontro e disse:
— O senhor não pode
entrar.
— Mas... eu sou
artista. Sou Luiz Gonzaga.
— Sem convite não
entra!
— Mas onde apanhar um
convite? Ou mesmo comprar?
— Com ninguém. Não tem
mais.
— Percebi então, pois
não sou tolo, (Luiz Gonzaga recomeça a palestra conosco) que não se tratava de
convite, mas sim de preconceito de cor. Pedi ao porteiro que me deixasse entrar
para falar com um diretor da rádio. Nada. Insisti. Nada ainda. Resolvi então
entrar por minha conta e peguei o elevador. No primeiro andar, porém, ele e
outros já me esperavam. E diante da minha insistência foram então sinceros e
explicaram a razão pela qual eu não podia entrar. Questão de cor. Em outras
palavras eles queriam dizer: PRETO NÃO ENTRA.
— E que fez você, Luiz
Gonzaga?
— Mandei chamar o meu
amigo, o esposo da artista que aliás já tinha até iniciado o programa.
— E tudo se resolveu?
— Ele foi ao diretor
da Rádio Gazeta. Explicou quem eu era, um artista brasileiro, um intérprete da
música nacional, um cantor, um compositor, um homem do Brasil, enfim! Pouco
depois o caso estava resolvido. Consegui entrar, mas que luta!
— E o que você diz a
isso, Luiz? Que acha você dessa atitude da Gazeta, tentando implantar o
preconceito de cor em seus domínios.
— Prefiro não dizer nada. O que narrei foi o que se passou
realmente. O público agora que tire as suas conclusões e que julgue como melhor
entender.
E aí terminou a
palestra sobre o assunto.”
Fiz questão de colocar
em negrito essa última frase de Luiz Gonzaga para mostrar o quanto ele era
sensato em relação a casos dessa natureza. Em vez de abrir as baterias contra a
Rádio Gazeta ou mesmo xingar o porteiro que impediu, obstinadamente, o seu
ingresso na emissora paulista, ele limitou-se a dizer que narrara apenas o fato
do modo que acontecera e que o julgamento caberia ao público. Ora, a essa
altura Luiz Gonzaga já era uma grande atração em São Paulo, para onde viajava
toda semana, cantando às vezes na marquise da rádio, já que não havia espaço
para a multidão que se comprimia nas ruas dentro do auditório da emissora.
Curiosamente, foi nesse mesmo ano, 1951, que aconteceu o terrível acidente
automobilístico, no qual o Rei do Baião e seus músicos Zequinha e Catamilho
quase perderam a vida. Eles viajavam para São Paulo... Quanto ao preconceito contra preto e Nordestino, fica a pergunta: — Será que mudou alguma coisa de 1951 para cá???
* Autor dos livros “O Rei do Baião – do Nordeste para o mundo”
(Editora Planeta, 2012) e “O be-a-bá do Sertão na voz de Gonzagão”, parceria
com Arlene Holanda (Armazém da Cultura).