quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

ALMANAQUES POPULARES



Almanaque O JUÍZO DO ANO (Coleção Arievaldo Vianna)

AS PROFECIAS DE MANOEL CABOCLO

Por Eliézer Rodrigues (jornalista)

Em dias tão turbulentos e apreensivos e sem imaginação, nada criativos, pelos quais estamos vivendo, como faz falta o almanaque “O Juízo do Ano”, publicação de Manoel Caboclo, editada, em Juazeiro do Norte. Caboclo pressagiava, também, muitas revoltas, crimes misteriosos, assaltos e vinganças terríveis. Tudo em versos de cordel.

Semelhantes ao formato dos folhetos de cordel, distribuídos em todo Nordeste com tiragem que chegava a 40 mil exemplares, entre 1959 e 1996, os almanaques eram disputadíssimos, principalmente pela criatividade na abordagem dos temas.

Além das indicações meteorológicas, tendo o sertanejo nordestino como alvo predileto, a publicação trazia conselhos favoráveis ao cultivo, além de previsões astrológicas, parapsicologia, numerologia e até ciências ocultas.

Tive a felicidade de entrevistá-lo (Jornal Diário do Nordeste/ edição 20/12/1992), em sua residência, em Juazeiro do Norte, pouco anos antes dele falecer, em 1996. Após a sua morte, o almanaque “O Juízo do Ano”, já em crise, deixou de circular.


Foto: Manoel Caboclo editava o almanaque, na sua gráfica, instalada na casa dele.



Os ALMANAQUES POPULARES e a LITERATURA DE CORDEL

MANOEL CABOCLO E SILVA foi também um conhecido poeta e editor de CORDEL. Essa ligação da Literatura de Cordel com os almanaques é muito antiga… Na primeira metade do século passado já circulava em todo o Nordeste o famoso ALMANAQUE DE PERNAMBUCO, do poeta e editor João Ferreira de Lima (foto), que era um verdadeiro livro de cabeceira dos matutos de outrora. Basicamente eram informações sobre a quadra invernosa, os melhores dias para o plantio, receitas caseiras, plantas medicinais, astrologia, tábua das marés e curiosidades. A matriz parece ter sido o famoso LUNÁRIO PERPÉTUO que, segundo Câmara Cascudo, era uma das leituras prediletas do povo nordestino no século XIX, exercendo grande influência sobre os cantadores e poetas populares que exerciam o ofício de “cantar Ciência”, modalidade muito apreciada nos primórdios da cantoria.

João Ferreira de Lima foi sócio de Manoel Caboclo, durante a década de 1960. Caboclo era colaborador e distribuidor do Almanaque de Pernambuco no Ceará. Depois disso, Manoel Caboclo resolveu criar o seu próprio almanaque, batizado O JUÍZO DO ANO, que circulou até a década de 1990.

No seu rastro surgiram outros almanaques similares, escritos e editados por poetas populares, como é o caso de Costa Leite, Vicente Vitorino de Melo e Manoel Caboclo e Silva. Destes, o único que ainda se encontra em atividade é Costa Leite, editando seu vetusto almanaque pela Editora Coqueiro. (A.V.)

domingo, 13 de janeiro de 2019

CONTISTAS DO CEARÁ (5)



SECA

Rachel de Queiróz

Era hora do almoço dos trabalhadores. Enquanto os homens comiam lá dentro, o fazendeiro velho sentava-se na rede do alpendre, à frente de casa espiando o sol no céu, que tinia como vidro; procurando desviar os olhos da água do açude, lá além, que dentro de mais um mês estaria virada de lama. Os dois cabras se aproximaram sem que ele pressentisse. Era um alto e um baixo; o baixo grosso e escuro, vestido numa camisa de algodãozinho encardido. O alto era alourado e não se podia dizer que estivesse vestido de coisa nenhuma, porque era farrapo só. O grosso na mão trazia um couro de cabra, ainda pingando sangue, esfolado que fora fazia pouco. E nem tirou o caco de chapéu da cabeça, nem salvou ao menos. O velho até se assustou e bruscamente se pôs a cavalo na rede, a escutar a voz grossa e áspera, tal e qual quem falava:

– Cidadão, vim lhe vender este couro de bode.

Aquele “cidadão”, assim desabrido, já dizia tudo. Ninguém chega de boa atenção em terreno alheio sem dar bom-dia. E tratando o dono da casa de cidadão. Assim, o fazendeiro achou melhor fingir que não ouvira e foi-se pondo de pé.

– O quê? Que é que você quer?

O homem escuro botou o couro em cima do parapeito e o sangue escorreu num fio pelo cal da parede:

– Estou arranchado com minha família debaixo daquele juazeiro grande, ali. Essa cabra passou perto – não sei de quem era. Matei, e a mulher está cozinhando a carne para comer. Agora, o couro – o senhor ou me dá dinheiro por ele, ou me dá farinha.

– E de quem é essa cabra? É minha? Quem lhe deu ordem para matar?

O velho estava tão furioso que o dedo dele, espetado no ar, tremia. E o loureba esfarrapado chegou perto e deu a sua risadinha:

– Ninguém perguntou a ela o nome do dono…

Mas o outro, sempre sério, olhou o velho na cara:

– Matei com ordem da fome. O senhor quer ordem melhor?

Nesse meio, os homens que almoçavam lá dentro escutaram as vozes alteradas e vieram ver o que havia. Eram uns doze – foram aparecendo pelo oitão da casa, de um em um, e se abriram em redor dos estranhos no terreiro. Aí o velho se vendo garantido, começou a gritar:

– Na minha terra só eu dou ordem! Vocês são muito é atrevidos – me matarem o bicho e ainda me trazerem o couro pra vender, por desaforo! Chico Luís, veja aí de quem é o sinal dessa criação.

O feitor largou a foice no chão, puxou as orelhas do couro, e virou-se achando graça para um dos companheiros:

– Era a sua cabrinha, não era mesmo, compadre Augusto? Está aqui o sinal…

O Augusto veio olhar também e ficou danado:

– Seus perversos, a cabra era da minha menina beber leite, estava de cabrito novo!



Mas o olho do homem escuro era feio, se ele se assustara vendo-se cercado pelos cabras da fazenda, não deu parecença. O loureba é que virava a cara de um lado para outro, procurando saída; ainda levou a mão ao quadril, tateou o cabo da faca – mas cada um dos homens tinha uma foice, um terçado, um ferro na mão . Nesse pé o fazendeiro, para acabar com a história, resolveu mostrar bom coração; e gritou para o corredor:

– Menina! Manda aí uma cuia com um bocado de farinha!

Depois, retornando ao homem:

– Eu podia mandar prender vocês, para aprenderem a não matar bicho alheio! Mas têm crianças, não é? Tenho pena das crianças. Leve essa farinha, comam e tratem de ir embora. Daqui a uma hora quero o pé de juazeiro limpo e vocês na estrada. Podem ir!

O homem recebeu a cuia, não disse nada, saiu sem olhar para trás. O outro acompanhou, meio temeroso, tirou ainda o chapéu em despedida, e pegou no passo do companheiro. O velho reclamava, em voz alta – cabra desgraçado, além de fazer o malfeito, recebe o favor e nem sequer abana o rabo. Os trabalhadores, calados, acompanhavam com os olhos os dois estranhos que marcavam um atrás do outro, na direção do juazeiro, do qual só se avistava a copa alta ali no terreiro.

Ninguém sabe o que pensavam; o dono da cabra deu de mão no couro e foi com ele para trás da casa. Aí a sineta bateu e os homens saíram para o serviço. Passando pelo juazeiro, lá viram a família ao redor do fogo, os meninos procurando pescar pedaços da carne que fervia numa lata. Mas o homem escuro, encostado ao tronco, via-os passar, de braços cruzados, sem baixar os olhos. Ainda foi o dono da cabra que baixou os seus; explicou depois que não gostava de briga.

MORALIDADE:
Este caso aconteceu mesmo. Faz mais de trinta anos escrevi uma história de cabra morta por retirante, mas era diferente. Então, o homem sentia dor de consciência, e até se humilhou quando o dono do bicho morto o chamou de ladrão. Agora não é mais assim. Agora eles sabem que a fome dá um direito que passa por cima de qualquer direito dos outros. A moralidade da história é mesmo esta: tudo mudou, mudou muito.

Fonte:
QUEIROZ, Rachel de. Cenas brasileiras São Paulo: Ática, 1997.