quarta-feira, 16 de maio de 2018

DEPOIMENTO


A pedido do poeta-editor Paiva Neves, da Cordelaria Flor da Serra, escrevi esse depoimento sobre a importância da Literatura de Cordel durante a minha alfabetização e como os folhetos contribuíram para despertar em mim o gosto pela escrita e a  leitura:




O CORDEL COMO FERRAMENTA 
AUXILIAR NA SALA DE AULA


Nasci em setembro de 1967, na fazenda Ouro Preto, pequena propriedade rural de meus avós, situada na divisa dos municípios de Quixeramobim e Canindé (hoje a região pertence ao município de Madalena). Vivi ali até os dez anos de idade, sob a luz da lamparina, obedecendo aos velhos costumes sertanejos, herdados de meus ancestrais.
A única escola que havia na região, distava quase uma légua e ainda utilizava a velha palmatória. Por conta disso, minha avó resolveu me alfabetizar em casa. Uma das ferramentas que utilizei durante esse processo de alfabetização foi a Literatura de Cordel. E por uma razão muito simples, além de ser uma leitura prazerosa, minha avó possuía uma coleção de folhetos que costumava ler em voz alta, para uma roda de ouvintes maravilhados com a narrativa dos cordéis. Eu tinha os meus prediletos: Proezas de João Grilo, Cancão de Fogo, Príncipe do Barro Branco, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás e vivia pedindo, insistentemente, para que ela os relesse.
Percebendo o meu gosto pelos folhetos e sabendo que eu já tinha idade suficiente para ser alfabetizado, minha avó comprou uma Carta de ABC e começou a me familiarizar com as letras. Assim que aprendi a juntar as sílabas, pegava os folhetos e tentava decifrar o seu conteúdo. Alguns eu já conhecia de cor e salteado, o que certamente facilitou o meu aprendizado. Aos sete anos eu já lia desembaraçadamente e virei uma atração na bodega de meu avô. Às vezes ele me sentava no balcão e pedia que lesse um folheto para os seus fregueses. O público, formado por pessoas simples e analfabetas, em sua maioria, sertanejos rudes, acostumados com as lides do roçado, ficava encantado com aquela novidade.

Os autores que eu mais gostava eram Leandro Gomes de Barros e José Pacheco. Do primeiro eu absorvi o gosto por histórias de encantamento e romances de fôlego como o Cachorro dos Mortos e Juvenal e o Dragão. Com José Pacheco, aprendi a métrica perfeita e o gracejo, tanto que aos oito anos eu já fazia algumas estrofes nos meus cadernos escolares. Meu pai, um amante da poesia, que sonhava em ser cantador na juventude, incentivava o meu estro e até me ajudava a corrigir as rimas. De métrica não havia necessidade porque sempre tive um ouvido privilegiado para o ritmo, fã que sempre fui de Jackson do Pandeiro. Então o domínio das redondilhas (maior e menor) eu aprendi muito cedo e depois, com o tempo, observando os cantadores, aprendi também o decassílabo e até mesmo os alexandrinos, lendo sonetos de Bilac e Augusto dos Anjos. Sempre gostei de folhetos de pelejas: Cego Aderaldo e Zé Pretinho, Riachão com o Diabo, Pinto e Milanês, justamente porque ofereciam a possibilidade de aprender novos estilos, não ficavam naquela mesmice da sextilha.
Prossegui nesse aprendizado, sempre em escolas informais, até os dez anos de idade. Somente em 1978 é que fui matriculado no Instituto São José, em Maracanaú e para ser admitido na quinta série fui submetido a uma prova, pois até ali eu não tinha boletins nem histórico escolar. Dona Mazé, a diretora do Instituto, ficou impressionada com a minha desenvoltura, um menino sertanejo, criado num ambiente rural, já tinha uma bagagem razoável de conhecimento. Isso porque sempre fui um leitor compulsivo, inclusive da Bíblia Sagrada. De modo que tirei nota máxima nesse teste preliminar e ingressei na série desejada sem qualquer embaraço.


Sabedor da importância do CORDEL no meu aprendizado, resolvi criar, em 2001, o projeto ACORDA CORDEL NA SALA DE AULA a fim de incentivar o uso do folheto como ferramenta paradidática nas escolas. Tempos depois conheci o pesquisador Ribamar Lopes, outro que também teve a influência do cordel no seu processo de alfabetização. Segundo ele, lá em Pedreiras-MA, terra de João do Vale, era comum que os alunos lessem em voz alta, nas aulas de sexta-feira e o professor deixava que o próprio aluno escolhesse o texto. Ele resolveu levar “A intriga do cachorro com o gato” e foi criticado por algumas pessoas da escola, que diziam não haver “literatura” naqueles folhetos de feira. Porém o velho Riba foi persistente e acabou despertando nos colegas o interesse pelos folhetos, tornando-se um hábito a leitura desses textos nas aulas seguintes.
No Maracanaú eu pegava folhetos emprestados com um colega que morava na Pajuçara, cujo nome não me vem à memória, mas eram folhetos diferentes, de capa colorida. O primeiro que o rapaz me emprestou foi “Vicente, o Rei dos Ladrões”, de Manoel D’Almeida Filho. Depois emprestou também “A marca do Zorro” e outros títulos publicados pela Luzeiro. Ele considerava Manoel D’Almeida Filho um dos maiores poetas do gênero. Em contrapartida, eu lhe emprestava folhetos tradicionais, da Lira Nordestina e do editor Manoel Caboclo e Silva, que comprava no Mercado Público de Maranguape. Não sei se os professores viam com bons olhos aquele intercâmbio... Os demais alunos se interessavam por quadrinhos e bolsilivros de faroeste. Ou simplesmente não liam nada, além dos livros escolares.
Tomando por base o meu exemplo e de outros poetas como Rouxinol do Rinaré, Evaristo Geraldo, Marco Haurélio, Klévisson Viana, dentre outros, não tenho dúvidas em afirmar que o cordel é uma ferramenta poderosíssima na formação de novos leitores. A sua narrativa é contagiante e o “professor folheto”, como chamava o saudoso poeta Manoel Monteiro, deve ser trabalhado em classe, de preferência em leituras coletivas, em voz alta.

Arievaldo Vianna