São Nicolau e o Krampus
O KRAMPUS
SERTANEJO
(PAPAI NOEL
ÀS AVESSAS)
Pelos
idos de 1973 ou 74 deu-se um fato curioso: o dia em que não vi Papai Noel. Lembro-me
de uma única vez em minha infância em que amanheceu um brinquedo debaixo da
rede, na manhã de Natal. Disseram-me que era o Papai Noel que o havia deixado.
Mesmo desconfiado, fingi acreditar naquela farsa. Tempos depois aconteceu um
episódio que me fez perder inteiramente a crença no velhote. Eu voltava da escola certo dia, quando nosso
primo José Rodrigues de Sousa, o Zé Miguel, me chamou muito animado e
perguntou:
—
Arievaldo, você já viu o Papai Noel?
—
Vi não, Zé Miguel. Ano passado apareceu um brinquedo debaixo da minha rede e
disseram ter sido o Papai Noel quem botou, mas eu desconfio que foi mesmo obra
da vovó ou de alguma de minhas tias.
—
Que nada, rapaz! Papai Noel existe! Está aqui em casa passando uns dias. Quer
ver?
José Rodrigues de Sousa, o saudoso "Zé Miguel"
A
Marta, minha prima, andava comigo e também ficou curiosa para ver o “bom
velhinho”. O Chico Bastião, devidamente combinado com o Zé Miguel, começou a
cantar velhas cantigas natalinas invocando o Papai Noel, enquanto o nosso ardiloso parente nos preparava uma surpresa. Entrou apressadamente para o quarto, vestiu uma
velha roupa de estopa, botou uma máscara horrenda de papangu e apareceu no alpendre de supetão, trajando essa estranha
indumentária e sapateando em nossa direção.
Nem
é preciso dizer o que se seguiu. Arrancamos em desabalada carreira, botando o
coração pela boca, com medo daquela aparição. Entretanto deu-me na veneta
voltar discretamente por dentro do mato e verificar a coisa de perto, para
contar de certo. Ora, não deu outra. Presenciamos o Zé Miguel às gargalhadas,
juntamente com seu cúmplice, despindo a máscara e a estranha indumentária.
Criei coragem e voltei para desmascará-lo, dizendo que já sabia de tudo, desde
o começo.
—
E por que foi que correram?
—
Corremos para ver o Papai Noel achando graça!
Eu
tinha resposta para tudo, nessas situações.
* * *
Sem
o saber, o Zé Miguel encarnou o Krampus, o antinoel dos contos russos. Reza a
lenda que o Krampus seria uma criatura mitológica que acompanhava São Nicolau
durante a época do Natal. E essa crença difundiu-se em várias regiões do mundo.
A
palavra Krampus vem de Krampen, palavra para "garra" do alto alemão
antigo. Nos Alpes, Krampus é representado por uma criatura semelhante a um
demônio. Enquanto o Pai Natal dá presentes para as crianças boas, o Krampus
avisa e pune as crianças más. Tradicionalmente, rapazes se vestem de Krampus
nas duas primeiras semanas de dezembro, particularmente no anoitecer de 5 de
dezembro, e vagam pelas ruas assustando crianças com correntes e sinos
enferrujados. Em algumas áreas rurais, a tradição também inclui surras
aplicadas pelo Krampus.
As
fantasias modernas de Krampus consistem em uma Larve (máscaras de madeira),
pele de ovelha e chifres. A manufatura das máscaras artesanais demanda um
esforço considerável, e vários jovens em comunidades rurais competem nos
eventos do Krampus. O “Papai Noel” encarnado pelo primo Zé Miguel nada mais era
que uma imitação desse personagem lendário, que aqui no Nordeste possui o nome
de “Papa-figo” ou “Véi do Saco”.
Foi
bom perder a crença no Papai Noel porque, ao mesmo tempo, deixei também de
acreditar nesse outro personagem que usavam para intimidar as crianças, o “Véi
do Saco”.
* * *
Com relação aos “caretas” ou “papangus” do
Bumba-meu-boi, a primeira vez que vi uma representação desse tipo foi no Iguaçu, distrito de Canindé-CE.
Os
participantes do reisado não assumem a pecha de “papangus”. Eles dizem que
papangus são os meninos da plateia. Os brincantes são os caretas.
A
criançada empolgada com esse folguedo não falava noutra coisa. Os meninos do
Antônio Tobias e outros garotos da localidade entenderam de fazer um reisado
mirim.
Tiramos vergônteas de mofumbo, para fazer a armação do boi, arranjamos
um velho lençol de chita para cobri-lo e a cara do bicho foi pintada num grosso
papelão. Faltava agora aprender as cantigas do boi. Foi quando alguém nos deu a
ideia de visitar o velho José João (ou João José), que morava nos arredores. O
bom ancião nos atendeu prontamente e repetiu dezenas de quadrinhas até que nós
decoramos a maior parte e nos munimos de um estoque de glosas para a encenação
do folguedo. Lembro-me perfeitamente dessas duas:
“Eu
me chamo Chico Torto
Revesso,
quebra-machado,
Cavo
cacimba no seco
Depressa
dá no molhado.
Só
não quero que me mandem
Na
rua, comprar fiado,
Que
fiado me dá pena
E
pena me dá cuidado.”
A
apresentação do grupo foi no terreiro do Toinho Tobias, cunhado de minha tia Augediva.
Apesar do amadorismo do grupo e dos inevitáveis improvisos, foi sucesso total. Retrato
de um Sertão não tão distante, que foi tragado pelas mandíbulas da tal
globalização.
Arievaldo Vianna (de O LIVRO DAS CRÔNICAS)
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