O Cometa
de Halley, um dos corpos celestes mais famosos na história da astronomia, sempre
visto com medo e desconfiança pelas pessoas simplórias do mundo inteiro, passou
a ser mais temido a partir de 1881. Não era exatamente o medo de que ele viesse
a se chocar com a Terra. O que aconteceu é que um astrônomo descobriu que a
cauda de todos os cometas contém um gás letal chamado cianogênio. Essa onda de
pânico, alimentada pela imprensa sensacionalista da época, aumentou ainda mais
depois que descobriram que o Halley
passaria pertinho da Terra em 1910 – o cometa passa a cada 76 anos e cruzou a órbita
terrestre novamente em 1986. Até jornais
importantes, como o New York Times,
lançaram teorias que toda a humanidade morreria envenenada pelo gás. Foi
preciso que cientistas de bom senso analisassem a questão com mais clareza, a
fim de acalmar as pessoas, garantindo que a cauda dos cometas, na verdade, é
formada por vapor d’água e um pouquinho de hélio e amoníaco, e que nessas
quantidades não fazem mal a ninguém. E, de fato, nenhuma tragédia aconteceu
quando da passagem do viajante espacial.
Como
se vê, o pânico se instaurou em todo o planeta e foi alimentado pela imprensa
sensacionalista. Não se tratava, portanto, de um chilique coletivo das populações
do Nordeste, sempre vistas como atrasadas e supersticiosas. O poeta Leandro
Gomes de Barros estava a par do assunto desde sempre. Ele viajava
constantemente nos trens da Great Western,
participava das rodas de conversas no Largo das Cinco Pontas e no Mercado São
José, lia também os jornais, revistas e almanaques que circulavam no seu tempo.
Em suma, viu nesse episódio um tema para uma deliciosa sátira, onde esbanja a
sua finíssima ironia e sarcasmo:
Eu andava aos
meus negócios,
Na cidade de
Natal,
No hotel que hospedei-me
Apareceu um
jornal,
Que dizia que
no céu
Se divulgava
um sinal.
O sinal era o
cometa
Que devia
aparecer,
Em Maio, no
dia 18
Tudo havia de
morrer,
Aí sentei-me
no banco,
Principiei a
gemer.
Gemi até ficar
rouco
Fiquei logo
descorado,
Depois o sangue
subiu-me
Que fiquei
quase encarnado,
Imaginando
n’um livro
Que um freguês
levou fiado.
Encontramos numa tese acadêmica da PUC/RJ, intitulada
“O cometa do fim do mundo: Ciência
e superstição na imprensa carioca de 1910”, de Maria Elisa Bezerra de Araujo, algumas considerações do astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas
Mourão sobre a passagem do famoso cometa no início do Século XX. Na sua análise,
as expectativas dos cientistas no início do século com relação à aparição do
Halley era de que não houvesse mais reações de medo. Segundo o autor, depois
que Edmund Halley, em 1695, descobriu que os cometas obedeciam a leis da física
e estabeleceu o ciclo do cometa que leva seu nome, “acreditou-se que todo o
temor em relação aos cometas deveria cessar numa civilização racional e
tecnologicamente desenvolvida”. No entanto, prossegue Mourão, o que se
constatou foi que por todo o mundo surgiam manifestações de pânico. O astrônomo
afirma ainda que “a despeito de todo o avanço científico, o homem ainda mantém
todo um universo de sentimentos e expectativas onde os cometas continuam a ser
mais que astros catalogados astronomicamente, pressagiando desgraças ou
renovando esperanças”.
Leandro não embarca nessa onda de histeria coletiva. Além
de não levar a sério esse temor infundado, vale-se de sua irreverência e bom
humor para criticar a usura dos ingleses e comerciantes, que se apressam em
cobrar as dívidas dos seus fregueses antes do “fim do mundo”.
É salvo, com toda família, graças a uma poderosa oração, recitada em prosa no
final do poema, e o providencial auxílio de uma bendita panelada e um garrafão
de sua bebida predileta, a famosa “aguardente Imaculada”, do engenho do Sr. Láo.
Trata-se, evidentemente, de um dos melhores folhetos “jornalísticos” do mestre
de Pombal-PB.
A 17 de
maio,
A fortaleza salvou,
Eu comendo a panelada
Que a velhinha cozinhou,
Quando um menino me disse:
- Papai, o bicho estourou!
A fortaleza salvou,
Eu comendo a panelada
Que a velhinha cozinhou,
Quando um menino me disse:
- Papai, o bicho estourou!
Aí eu juntei
os pratos,
Embolei todo o pirão,
Botei o caldo num pote,
Peguei-me com o garrafão,
Me ajoelhei, rezei logo,
O ato de contrição.
Embolei todo o pirão,
Botei o caldo num pote,
Peguei-me com o garrafão,
Me ajoelhei, rezei logo,
O ato de contrição.
Aí disse eu:
— Eu beberrão me confesso a pipa, a
bem-aventurada imaculada de Serra Grande, ao bem-aventurado vinho de caju, a
bem-aventurada genebra de Holanda, vinhos de frutas, apóstolos de deus Baccho,
e a vós, oh caxixi que estais à direita de todas as bebidas na prateleira do
marinheiro.
Amém.
Quando
eu acabei de orar,
Olhei para amplidão,
Ouvia dançar mazurca,
Cantar, tocar violão,
Era um anjo que dizia:
- Bravos de tua oração!
Olhei para amplidão,
Ouvia dançar mazurca,
Cantar, tocar violão,
Era um anjo que dizia:
- Bravos de tua oração!
Aí um
anjo chegou,
Com uma túnica encarnada,
Disse: - Sou de Serra-Grande,
De uma fazenda falada,
Eu sou o que cerca o trono
Da gostosa imaculada.
Com uma túnica encarnada,
Disse: - Sou de Serra-Grande,
De uma fazenda falada,
Eu sou o que cerca o trono
Da gostosa imaculada.
Sr.
Láu, o proprietário,
Do reino onde ela mora,
Me mandou agradecer-lhe,
A súplica que fez agora,
Aí apertou-me a mão
E lá foi o anjo embora.
Do reino onde ela mora,
Me mandou agradecer-lhe,
A súplica que fez agora,
Aí apertou-me a mão
E lá foi o anjo embora.
A
esse respeito é importante observar o que escreveu o pesquisador cearense
Francisco Cláudio Alves Marques em seu livro “Um pau com formigas ou o Mundo às avessas”
(Edusp, 2014): “Geralmente, na literatura
de cordel, as histórias em torno do tema da cachaça têm valor como comentário
sobre a moralidade do álcool e os costumes da sociedade. Contudo, em Leandro
Gomes de Barros, a bebida é concebida como um dos prazeres da vida e não como
um vício; válvula de escape e pretexto para que se digam as verdades mais contundentes
sobre o sistema e seus representantes”. O autor enxerga neste e noutros poemas
de Leandro traços de uma “festa dionisíaca”.
O COMETA EM PORTUGAL...