JOSÉ FREIRE SOBRINHO
O Baú
da Gaiatice teve a primazia de apresentar dezenas de tipos populares de
Canindé e cidades adjacentes, que ainda não haviam sido retratados por nenhum
cronista. De parelha com Pedro Paulo Paulino, traçamos em prosa e versos o perfil
de figuras como Broca da Silveira, Bunaco, Zé Adauto Bernardino, Muquila,
Zuquinha das Campinas e o impagável Zé Freire que começaram, a partir de então,
a aparecer com freqüência na obra de outros autores. Iniciamos esse trabalho
nos idos de 1997 e o livro veio à lume dois anos depois, tornando-se referência
no gênero.
Quanto ao Zé Freire, um dos personagens
mais interessantes do livro, temos a grata satisfação de encontrá-lo vivo e com
saúde, a narrar suas peripécias e encantar seus interlocutores com a sua prosa
engenhosa e divertida. Pedro Paulo Paulino, no seu blog Vila Campos Online (www.vilacamposonline.blogspot.com)
continua pesquisando e publicando uma série de crônicas a respeito do Zé Freire,
de quem é amigo pessoal, para deleite dos milhares de leitores que visitam
aquela página na internet. Ninguém melhor do que ele conseguiu captar a graça e
irreverência do curioso personagem, tampouco logrou reproduzir com tanta
perfeição o seu modo de conversar e graça peculiar. Dizem que o saudoso Leota
dava um verdadeiro show em suas palestras, falando desses tipos sertanejos. Eu
imagino se ele tivesse tido a honra de conhecer o Zé Freire...
Vejamos a nova crônica que Pedro Paulo Paulino preparou após a recente visita que fez ao Zé Freire, em sua fazendola nas imediações do distrito de Esperança:
Zé Freire mora
numa pequena propriedade rural nos arredores da vila que tem o auspicioso nome
de Esperança. Foi ali que há mais ou menos um par de décadas ele resolveu se
aboletar, trabalhar e viver. Encontrei-o pela manhã remontando a cerca de varas
que o “Sereno”, seu Pégaso indomável, havia derrubado, num ímpeto próprio dos
eqüinos corajosos.
Logo que me
avistou, Zé Freire caminhou de onde estava e fez esta saudação: “Deus te traga
em boa hora, feliz do homem que encontra outro trabalhando!” O rosto empoeirado
e queimado do sol, mas conservando o vigor; bigode escuro e imponente, olhos
acinzentados pelos 80 janeiros completos, mãos grossas cujas riscas são como
riachos escorrendo suor, Zé Freire pareceu-me um velho bruxo em estado de
abandono.
Do alto da
chapada, ele abre os braços para um lado e outro e mostra o produto do seu labor
diário: cerca bem cuidada, capim verde para o gado, bebedouro limpo junto à
represa onde resiste um punhado dágua, mas em cuja vazante nunca faltam a
batata, o jerimum, o feijão de corda e a
melancia.
Ao redor, a
caatinga pintada de preto toma conta do resto.
– Este verde é
um pequeno oásis, comento. – Ele desconhece a palavra oásis e dá seu parecer,
vitaminando bem a conversa, como é de seu bom
natural:
– Isto aqui,
Pedro, abaixo de Deus, é obra minha e do seu Chico, meu ajudante. Acordo
primeiro que o galo e já dou de garra da luta. Desde o dia que nasci não parei
de trabalhar um minuto, já sofri mais do que jumento fazendo
açude.
E prossegue
falando caudalosamente da sua trajetória no mundo, seja como boiadeiro, seja
como curandeiro, quiromante, feitor de obra, mochador de boi, poeta e profeta,
motorista de horário, e agora criador e roceiro, enfrentando pau e pedra, chuva
e seca.
– Não reclamo
a Deus nem ocupo Ele com pouca coisa. Conheço 23 estados do Brasil, fiz 55
filhos, perdi a conta dos netos e dos bisnetos e das carrada de mulher
que apareceu na minha vida. Quando eu era novo, num só ano de bom inverno
emprenhei 14 companheira, inclusive uma das
sogras.
Dito isto, me
convida para o café com pão de milho da hora, servido pela
D. Laninha que, segundo
ele, foi sua derradeira conquista, a qual lhe deu os herdeiros caçulas:
o Cidrak, já engrossando o cangote, e o José Freire Sobrinho Jr., de apenas três
anos. “Este último”, diz Zé Freire, “puxou noventa e nove por cento do meu
sangue. Só é menino na parença, mas já tem
ação de cabra macho disposto e namorador”.
(...)