ARIEVALDO E SUA AVÓ CENTENÁRIA
Há exatos cem anos, no dia 16 de junho de 1912,
nascia em Fazenda Castro, município de Quixeramobim, Alzira de Sousa Viana,
filha de Francisco de Assis de Sousa (Fitico) e Maria das Mercês Sousa Viana.
Falo de minha avó paterna, tantas vezes citada como a pessoa que mais
contribuiu com a minha alfabetização e de quem herdei o gosto pela escrita e
pela leitura. Numa época em que as mulheres sertanejas permaneciam analfabetas,
vovó teve a sorte de frequentar escolas em Quixeramobim e Canindé, pois seu
pai, um homem extremamente religioso e afeito à leitura, logo percebeu nela uma
Inteligência extraordinária e queria educá-la para ser freira.
O tempo passou, ela tornou-se adulta e não
realizou a expectativa paterna, retornando ao seio da família onde dedicava-se
à costura, ao bordado e aos afazeres domésticos. Por essa época já era uma
leitora assídua de vários tipos de leitura, mas, por desejo do pai, era quem
tirava as novenas de santo (Mês de Maria, Santo Antônio etc), lia os
testamentos de Judas e, sobretudo, os folhetos e romances de cordel que por lá
apareciam.
Aos 24 anos enamorou-se de Manoel Barbosa Lima,
possivelmente seu primeiro e único amor, com quem só pode casar-se depois de
fugir de casa, como já foi narrado anteriormente num texto que escrevi sobre o
centenário do meu avô. Creio que não é necessário relatar tudo outra vez...
Basta o leitor recapitular o nosso blog e procurar a postagem “Mané Lima
centenário”. A partir daí, ela passou a assinar Alzira de Sousa Lima pelo resto
da vida. O casal teve onze filhos, dos quais sobreviveram nove, apesar da
pobreza e dificuldades que enfrentaram no início de sua vida a dois. Na década
de 1950 as coisas melhoraram sensivelmente. Manoel ingressou com sucesso no
ramo comercial, expandiu a suas relações, adquiriu terras, construiu casa de
morada ampla e arejada, enfim, colheu os frutos de seu trabalho perseverante.
Minha avó costumava dizer que quando Deus nos
fecha uma porta, Nossa Senhora nos abre uma janela. Na sua visão simples de
mulher sertaneja, temente à Deus e devota de Nossa Senhora (jamais deixou de
rezar uma novena em devoção à Virgem Maria no mês de maio), vovó queria mostrar
com isso que a Providência Divina jamais desampara aqueles que rezam com fé e
confiam na graça de Deus. Sobretudo aqueles que sabem dar amor aos seus
semelhantes e procuram, de alguma maneira, ajudar o seu próximo. Mas também
sabia ser prática e não deixava tudo nas mãos de Deus, procurando fazer a sua
parte. Era sempre requisitada quando algum dos netos adoecia, porque era eximia
conhecedora do poder medicinal de algumas plantas e também, por experiência,
sabia quais os remédios de farmácia poderiam ser úteis. Resultado, todos os
netos sobreviveram e somam em torno de 40.
Uma das cenas que me traz a sua imediata
recordação é a presença da lua, quando desponta no finalzinho da tarde e fica
quase invisível, esperando a cortina da noite para mostrar o seu esplendor.
Quando criança, eu sempre a acompanhava nas visitas que fazia aos filhos e
vizinhos. Num dado momento, eu via minha avó tirar algum dinheiro do bolso do
vestido, apontá-lo em direção à lua e pronunciar algumas palavras em voz baixa.
Um dia ela me explicou o motivo. Era uma oração que aprendera quando criança,
pedindo a influência benéfica do velho satélite às suas economias:
Deus vos salve, lua cheia
Clara e resplandescente
Quando fores e vieres
Traga mais desta semente!
Coincidência ou não, nunca faltava dinheiro nos
seus bolsos. Era uma verdadeira cacimba de areia, uma fonte quase inesgotável.
Todos os anos, na Festa de São Francisco, em Canindé, era vítima dos amigos do
alheio. Coitada, curta da vista, com dinheiro nos dois bolsos do vestido, era
alvo fácil para os ladrões. Por outro lado, inventou um bolso interno, onde
guardava as cédulas graúdas. Os filhos brincavam, sempre que ela chegava à Meca
Franciscana: - A mamãe já veio deixar o dinheirinho dos ladrões!
Por falar em ladrão, ela tinha uma oração
infalível para descobri-los, o “Responso de Santo Antônio”, que parece só
funcionar depois do roubo efetuado, não serve para preveni-lo. Esta poderosa
oração é muito conhecida em todo o Brasil e encontra-se num velho livro de
orações chamado Escudo Admirável*:
RESPONSO DE SANTO ANTONIO
- Se milagres desejais,
Recorrei a Santo Antônio,
Vereis fugir o demônio
E as tentações infernais.
- Recupera-se o perdido.
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.
- Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos.
- Recupera-se o perdido.
Rompe-se a prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.
- Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte
E torna-se o enfermo são.
(Rezar um Glória ao Pai).
- Recupera-se o perdido
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.
V. – Rogai por nós, bem-aventurado Antônio.
R. – Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
(Fonte: Escudo Admirável, pág. 451)
Na velhice ficou praticamente cega e o que mais
lamentava era não poder ler. Jamais ouvi ela se queixar de não poder ver a
fisionomia dos entes queridos ou as belezas de um inverno farto. O que ela
realmente lamentava era a impossibilidade de escrever cartas para os parentes
distantes (fazia com certa dificuldade, sem acertar com as pautas do caderno) e
praticar as suas leituras. Depois de uma bem sucedida cirurgia de catarata ela
recuperou parte de sua visão e voltou a ler desembaraçadamente.
Alzira de Sousa Lima faleceu no dia 16 de setembro
de 1994, após uma luta contra um câncer no esôfago. Ela tinha a garganta muito
estreita e engasgava-se com muita facilidade. Certa feita, engasgou-se com um
pedaço de galinha e isso deve ter deixado graves sequelas, possibilitando o
desenvolvimento do câncer que a vitimou.
Para mim, Alzira representa um farol na minha
formação religiosa e cultural. Sua religião era aquela que Ariano Suassuna
costuma chamar de “Catolicismo Sertanejo”, bem identificada com os costumes da
nossa região e um pouco distanciada da Igreja de Roma. Dentre os seus santos de
devoção figuravam também o Padre Cícero, o Padre Ibiapina e outros pregadores
nordestinos. E as festas religiosas nordestinas, como todos sabem, unem o
sagrado e o profano, de forma indissociável. Era por isso que eu gostava de ir
a Quixeramobim e Canindé em sua companhia, pois ela adorava andar pelas ruas
apinhadas de gente, comprando brinquedos, frutas, utensílios domésticos e
outras bugingangas. Na data de seu centenário de nascimento, é a singela
homenagem que lhe presto, com todo amor e carinho.
Arievaldo Viana Lima
* Sobre o ESCUDO ADMIRÁVEL
Padre Manoel José | |
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