João Alexandre Sobrinho: inventou de tocar e improvisar versos aos dezenove anos e teve uma contenda com Patativa do Assaré por causa de “Triste Partida”
Muita gente desconhece esse fato... Você sabia que “Triste Partida”, obra-prima de Patativa do Assaré, tem um co-autor?
A famosa canção do poeta de Assaré, uma das preferidas de Luiz Gonzaga, pode ter tido a colaboração de um cantador que foi parceiro e amigo de Patativa: JOÃO ALEXANDRE SOBRINHO. É o que veremos nesse artigo publicado pelo professor Gilmar de Carvalho, no Diário do Nordeste, em maio de 2003:
Cantoria
João Alexandre Sobrinho, voz e viola
Publicado no Caderno 3 (Diário do Nordeste) em 12 de maio de 2003
Fotos: FRANCISCO SOUSA/ÁLBUM DE FAMÍLIA
A casa da Avenida Paraíba, esquina com a rua José Paracampos, bairro do Romeirão, em Juazeiro do Norte, esconde João Alexandre Sobrinho, um dos grandes da arte da cantoria, de todos os tempos
No terreno adquirido nos anos 70, quando a cidade começara a se expandir nesta direção (depois da inauguração do estádio), construiu uma vila, cujo aluguel complementa uma aposentadoria insatisfatória.
O pé de jambo do jardim foi cortado por conta dos meninos, em busca dos frutos maduros, que não o deixavam em paz.
A cadela Tila, oportunista, ameaça sair para a calçada. A varanda é abafada, mas ele abre a porta da sala, com móveis estofados, o televisor, fotos da família, inclusive a dele, aos trinta e poucos anos, empunhando a viola.
Mora com a cunhada Priscila, e a filha Matilde. A primeira visita foi marcada pelo telefone. Depois, os contatos se tornaram prazerosos, e os labirintos da casa foram se abrindo, inclusive um quintal, com um frondoso sapoti, onde ele se refugia do ruído da rua.
Abatido pela morte da esposa Francisca, quatro anos atrás, o cantador revolve o baú das relembranças, o que reforça sua importância de mestre da arte da palavra cantada, que ele soube, pelo que ficou na memória da comunidade, trabalhar como poucos.
O CONTEXTO
Em 1928, Lampião espalhava pânico por onde passava, e deixava o Nordeste em polvorosa. As narrativas orais ampliavam as façanhas do bando rebelde, fixados pela literatura de folhetos, que depois ganharam as páginas do romance social, e os planos seqüências do cinema novo.
Foi neste clima de conflagração que os Alexandre decidiram sair de Ouro Branco, no município alagoano de Santana de Ipanema, para buscar refúgio na terra do Padre Cícero.
Na bagagem, veio o menino João, nascido em 1920, na localidade de Olho d´ Água do Chicão. O pai, Tito Alexandre da Silva, que sempre teve preguiça de trabalhar na roça, além de sapateiro, era informante da polícia civil, e temia ser agredido pelo cangaço.
Juazeiro significava, também, a expectativa de uma vida nova, para os romeiros que chegavam à Nova Jerusalém sertaneja, onde Padre Cícero os acolhia, dava a sua bênção, e ainda sugeria uma ocupação.
Os Alexandre foram morar na rua do Limoeiro, no arisco, proximidades da Estação Ferroviária, e o chefe da família foi trabalhar como pedreiro.
A mulher, Felismina Maria da Conceição, impregnada pela cultura tradicional, rimava, embolava, e cantava coco de roda, tocando pandeiro, isto nas Alagoas; no Cariri, contava histórias para um menino deslumbrado com o que ouvia. Ele tem até verso dela, que participou, com umas estrofes, de uma toada de vaquejada que ele compôs: “Adeus serra de Caiçara / serrote da Carié / nós vamos pra Moxotó / pra casa de Manoé / quem pagou o caminhão / foi meu filho Ezequié, ê, ê!.
João teve apenas três meses e poucos dias de banco de escola, saindo de lá, quando já dominava a carta de ABC, na quarta lição do Segundo Livro, de Felisberto de Carvalho, depois da surra de palmatória que levou da professora e madrinha, porque estaria “mangando” de um colega. O pai, indignado, não deixou que ele voltasse à sala de aulas. Ainda magoado, tantos anos depois, diz que ela fez isso “de malvada”.
Os pais estavam no segundo casamento. A mãe teve cinco filhos, da primeira união, e cinco da segunda: Manuel, barbeiro em Arapiraca (AL); Alexandre Tito, artista plástico, na mesma cidade; João Tito, que morreu criança; Emília, morta aos 36 anos, além de João Alexandre. O pai, viúvo, não tivera filhos do primeiro enlace.
Traziam no matulão, esperança, e a certeza da paz. Lampião nunca atacaria a cidade do santo do povo, onde estivera, dois anos antes, para receber a patente de capitão, e ser cooptado para combater a Coluna Prestes, grupo de militares que percorria o país, para conhecê-lo e combater, politicamente, os privilégios das oligarquias.
INICIAÇÃO
O jovem João Alexandre “inventou” de tocar e improvisar versos aos dezenove anos. A mãe, costureira, o incentivou. Foi quem tirou os cinco mil réis do bolso para a compra da primeira viola, a um vizinho que chegara de São Paulo, e queria se desfazer do instrumento que trouxera.
João Alexandre não tinha um tostão, e nem sabia tocar, “era só vontade”, admite, começava o “tirinete”, ele faz o balanço hoje, e “foi o dinheiro mais abençoado que ganhei em toda a minha vida”.
Quem não gostou muito foi o pai, que fechou a cara, e disse, categórico, que todo cantador era irresponsável e cachaceiro, mas terminou por aceitar a decisão do filho. “Não gostava, mas não empatou”. Os parceiros apareciam, em grande número, mas o “velho” tinha o cuidado de evitar que o filho fizesse dupla com cantadores boêmios.
A família ficou num vaivém, entre o Ceará e as Alagoas, depois do desmantelamento do cangaço, com a morte de Lampião e Maria Bonita, em 1938, no sertão de Angicos (SE), e João optou por se fixar no Cariri.
No final das contas, seus pais terminaram por ficar mais tempo no Juazeiro, onde morreram, na década de 60, com uma diferença de dois meses e um dia do marido para a mulher, estando ambos sepultados no cemitério do Socorro.
Aos poucos, ele foi dominando o instrumento, autodidata que era. Seu primeiro baião de improviso foi com o cantador Bezerrinha e, de tão marcante, ele não esquece a data até hoje: 15 de agosto de 1939, nem os quinze mil réis que ganharam.
Cantou muito em “festa de santo”, ou renovação, que comemora, anualmente, a entronização do Coração de Jesus, um ritual forte no catolicismo popular.”Nunca fiquei liso, vivi 52 anos às custas da viola”, ele constata, e pode-se dizer que se saiu bem, tanto do ponto de vista da imagem que cristalizou, como do que amealhou.
Casou, em 1940, com Francisca Pereira Alexandre, e tiveram apenas uma filha, Matilde, que lhe deu dois netos (João Alexandre e Juliana) e uma bisneta (Ana Letícia). Ela era “cuidadosa” com o marido e “não muito ciumenta”.
A perda da mulher, ainda é muito dolorosa para ele, que gravou uma fita com uma elegia à companheira, intitulada “Um ninho de amor que se desfez”.
Relembra o passado, mostra seu Cd “Memórias de um poeta” gravado, domesticamente, pelo neto, e faz planos de publicar uma coletânea de poemas,- o impresso legitimando o oral -, cujos originais estão à espera de um patrocínio.
TRAJETÓRIA
João Alexandre relembra alguns dos grandes nomes da cantoria com quem pelejou: João Pereira, Expedito Passarinho, Severino Pinto, Lino Pedra Azul, Joaquim Vitorino, Amaro Bernardino, Antonio Aleluia, Zé Miguel, Antonio Marinho, e Vicente Landim, ao todo, mais de trezentos rivais.
Ele diz que um cantador aprende com o outro, no calor da hora, e enumera os romances que cantava, como “Coco Verde e Melancia”, “ O Mau Filho e o Bom Pai”, mas gostava mesmo era das pelejas. Não deixou folhetos impressos, como a maioria dos seus parceiros, que se moviam no campo da oralidade.
Ainda solteiro, passou seis meses em Fortaleza, para onde voltou outras vezes, e cantou com os grandes nomes da cantoria da capital, como Siqueira de Amorim, Alberto Porfírio, e o piauiense Domingos Fonseca.
Ele diz que “agüentava o chicote” e por isso nunca levou “pisa” de cantador.
O rival mais famoso foi mesmo o Patativa, com quem cantou durante quase dez anos. A afinidade foi tanta que João Alexandre chegou a comprar um terreno, e a se estabelecer na serra de Santana, onde o poeta morava.
PATATIVA - Caricatura de Arievaldo Viana
Dividindo versos com Patativa
O CANTADOR João Alexandre Sobrinho: em “Triste partida”, parceria reclamada com o poeta de Assaré
FRANCISCO SOUSA/ÁLBUM DE FAMÍLIA
Cantador novo que era, sua viola ficava de pé, na parede da entrada do Mercado de Assaré, na expectativa dos convites para apresentações.
Perto do parceiro e compadre (é padrinho de Afonso) ficava mais fácil arranjar cantorias nos sítios, e assim faziam pequenas viagens, sempre a cavalo, para Mombaça, Cedro, Iguatu, Campos Sales, Potengi, e Araripe.
Um episódio curioso é o do dia em que o violeiro boa pinta, já casado, se engraçou de uma moça que assistia à cantoria. Patativa, quando viu o “enxerimento”, delatou o parceiro: “A família desse João / é maior do que a minha / tem um filho caminhando / tem outro que engatinha / e eu soube que a mulher dele / ficou comendo galinha”, fazendo referência à dieta das mulheres paridas.
As últimas cantorias com o poeta de Assaré foram em 1958, e as controvérsias vieram por conta da toada “Triste Partida”, que Luiz Gonzaga ouviu no rádio, em um programa de violeiros de Cajazeiras (PB), e quis comprar, antes de gravá-la, em 1964.
João Alexandre reclama a autoria da música de “Triste Partida” e Patativa dizia que a composição era só dele. Depois de muita insistência, admitiu que o compadre “contribuiu” com a melodia, que levou para todo o país, na voga da canção de protesto, a denúncia de um “intelectual orgânico”, que ia fundo nos problemas da região, porque tinha vivências do que estava falando. A letra havia sido publicada no livro de estréia de Patativa, “Inspiração Nordestina”, em 1956, o que retira, qualquer influência da seca de 1958 sobre a composição. Seca braba aquela, que deu origem à Sudene, e aumentou o êxodo, agora não mais para a Amazônia, ou para São Paulo, mas para a construção de Brasília, a nova capital, inaugurada em 1960.
Depois desta disputa pela autoria, as relações entre eles nunca foram as mesmas. Deixaram de se visitar, apesar de Patativa vir com freqüência a Juazeiro, e de João Alexandre possuir um carro, e, ainda que tentassem, era impossível disfarçar as mágoas.
VOZ E VIOLA
Sua estréia no rádio foi marcada por uma visita que fez a Dom Vicente, então bispo do Crato, em companhia de Geraldo Menezes Barbosa. Cantou no Palácio, e o bispo gostou tanto que o convidou para se apresentar na Rádio Educadora, da diocese. Lá ele ficou dez anos, enfrentando Antonio Aleluia, Antonio Maracajá, e Zé Magalhães, dentre outros rivais.
A morte do Papa João XIII, o ideólogo da renovação da Igreja Católica, foi assim cantada por ele: “Com a morte do Papa Vinte e Três / enlutaram-se muitos corações / trouxe muita tristeza pras nações / esse golpe fatal que a morte fez”, de acordo com a “Antologia Ilustrada dos Cantadores”, de Francisco Linhares e Otacílio Batista, editada pela Imprensa Universitária, em 1976.
Em Juazeiro, João Alexandre cantou durante sete anos com Pedro Bandeira, que chegou a morar em sua casa, no início da carreira, com quem também se desentendeu, e ficaram vinte anos sem se falar, não por problemas de autoria, mas por questões financeiras.
Faziam dupla, nas apresentações ao vivo, e nos programas de rádio, onde a presença dos violeiros foi ganhando espaço, ao contrário das previsões apocalípticas que previam o fim da cantoria, com a chegada do transistor.
Ao todo, foram vinte anos na rádio Progresso, de Juazeiro do Norte, e quando saiu de lá deixou de cantar, é o que diz, ainda que participasse, eventualmente, dos programas de outros violeiros, como o de Sílvio Granjeiro, na rádio Vale do Cariri, também em Juazeiro.
Relembra o improviso feito para saudar o colega Geraldo Amâncio, que havia deixado o Cariri, em busca de espaços mais amplos: “Meu caro Geraldo Amâncio/como vai de Fortaleza?/aumentou mais o recurso/ou cresceu mais a pobreza?/melhorou da alegria/ou cresceu mais a tristeza?”.
Avalia que a maior parte dos cantadores “faz balaio”, preparando e decorando, antecipadamente, o que vai ser cantado, o que é falso, e abre mão da força do improviso. É exatamente na rapidez e agilidade do argumento, empunhado a palavra como uma arma, que a cantoria ganha importância, ritmo, e empolgação.
O “balaio” é a necrose de um processo da prevalência da voz, que vigora desde tempos imemoriais, acompanhada, na maioria das vezes, pela viola.
Considera Ivanildo Vilanova o maior cantador, dos que estão na ativa, vindo, em seguida, Geraldo Amâncio.
Também se refere a Moacir Laurentino, a Sebastião da Silva, e diz que Oliveira de Panelas faz “balaio”, prática que ele tanto abomina.
Em relação aos repentistas do Cariri, ele não ameniza o comentário ácido: “são violeiros de sopapo, meio lá e meio cá”.
Relembra fragmentos de improvisos que se perderam no tempo, como a toada de aboio que cantou numa vaquejada em Juazeiro: “Quem gosta de vaquejada / faz da maneira que eu faço / tanto pega boi com a mão / como pega boi de laço / e cada garrote que apanha / tem que deixar um pedaço, ô, ô.”
É um grande narrador de episódios, do tempo em que vendia cavalos, ouro de Juazeiro, e “lambe-lambe”, tirava retratos com a “mão no saco”.
Fez de tudo um pouco, mas sua grande contribuição foi dada à transmissão oral, e à riqueza do imaginário sertanejo, no ponteio da viola, manifestação fugaz, mesmo no tempo do registro e da reprodução técnica, porque é impossível captar a entonação, as nuances da voz emitida, e a performance, quando o corpo todo expressa.
Gilmar de Carvalho - Especial para o Caderno 3
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